sábado, 23 de dezembro de 2017

Alguém que não se quebra porque não é sólida

   Alguém que arde, mas que nunca queima as mãos que a tocam. Que é multicor, mas que não deixa rastros nos móveis, estofados, almofadas, lençóis ou paredes, porque é espectro iluminado, atravessando mosaico; não solta tinta, é passagem. Alguém que não tem medo de escuro, cachorro, falta de dinheiro, mas se assusta, e reza baixo, quando escuta o barulho de uma sirene de ambulância que ultrapassa os carros na avenida.
  Alguém que não tem muito sono, mas demora para se levantar da cama aos sábados pela manhã. Alguém que não sabe a que lugar ir, mas caminha muito, sempre em frente. Alguém que compra aspirinas, band-aid, soro fisiológico, algodão e chicletes, antes de viajar, mas se esquece das passagens. Alguém que sobe em cima de um touro, mas não tenta convencê-lo a se mover.
  
  Alguém que reparte o cabelo de um novo jeito, faz trança, corta a própria franja com uma tesoura quase cega, pinta, tonaliza, descolore, passa escova e secador, coloca faixas, fitas, grampos e chapéus. Mas que, ainda assim, é reconhecível, indisfarçável, a outra mesma do dia anterior.
  Alguém que não gosta de discursos longos, não acompanha novelas, séries e grupos de leitura com chá. Alguém que gosta de olhares longos, acompanha silêncios, suspiros e leitura individual com café. Que alcança a prateleira mais alta no supermercado, mas demora a achar o lado certo da abertura do saco plástico na seção de verduras. Alguém que limpa tapetes, carpetes, pisos e solados de sapatos para tirar a poeira antiga e recomeçar os passos a cada dia.

  Alguém que não aceita, mas não interroga; que não abraça, mas ama; que sangra, mas cicatriza; que não hesita, mas se arrepende. Alguém que não tem pressa, mas não adia decisões. Que coloca a poltrona de frente para janela e nunca liga a TV, quando chove, para escutar os trovões, o vento e as gotas, batendo no telhado da casa vizinha.
  Alguém que prefere o doce ao salgado, mas que prova do amargo,  do azedo e do umami; dá provas diversas às papilas gustativas. Alguém que compra gergelim, orégano, páprica e noz moscada; que recolhe cacos, restos, sacolas vazias, mágoas, manhãs e maresias. Alguém que pensa alto e tem fala muda; que nunca esquece, se não anota. Mas se escreve, perde para sempre no papel.

  Ela que reconhece, mas  estranha ou estranha muito e só depois reconhece. Ela que sabe a língua das ovelhas, mas não é pastora de rebanhos; que tem um cajado, mas nunca o ergue mais do alto do que o próprio queixo.
  Ela, filha de um carpinteiro, irmã mais velha de um caminhão, a neta de uma loba que tem a voz mais doce que um arrulho de pomba. Ela que não sabe de cor os nomes das bacias hidrográficas do seu próprio país, porque os nomes não ajudam em nada; que ganha coisas e não sabe usá-las, que compra coisas e dá de presente. Ela sempre estrangeira, nunca turista; ela espanta os turistas.

  Ela que não se ausenta, mas sempre chega depois do horário marcado; que transita na alameda entre a melancolia e o contentamento; que se senta mais próxima de um, mas sente-se mais atraída pelo outro. Ela que embaralha as cartas, mas não as distribui, que nunca tira o rei de ouros, nem a dama de espadas. Que não tem agenda, mas sinaliza os compromissos nos calendários de parede, num código que às vezes tem dificuldades de decifrar.
   Ela que descobre armadilhas, mas não desvia delas, que coloca pé ante pé até chegar ao final da ratoeira, sem perder uma perna ou braço.

  Dela que não esperam o não, mas que sempre vem. Dela que desenham o perfil, mas não apontam os grafites.
  Ela que não se apavora com abalos sísmicos, possibilidade de avalanches ou desabamentos. Que estende as roupas no varal, debaixo de chuva e continua a varrer a casa, depois que uma parede é alvejada por balas sem direção.
  Ela que admira os ciclos marítimos, as fases da lua e os movimentos de rotação, translação  e revolução, mas não muda  seu lado na cama nem o seu lugar à mesa.

  Ela que chora numa data importante que não é dela e paralisa em seus dias especiais; que se lembra do último dia de infância, mas que não sabe, com precisão, quando começou a vida adulta.
Alguém que não pode ser ferida, porque não tem carne em abundância; alguém que é colossal com menos de um metro e sessenta centímetros. Ela que já mudou muito e continua a mesma,  que é vento, é líquido, é musgo macio, grudado à pedra, em beirada de rio. Quando tentam prendê-la, ela já mudou de estado físico, atmosfera e cabelo.
  Alguém, para sempre sobressaltada, mas  que nunca se quebra porque não é sólida.


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