terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Pensei em sermos acasos

  Pensei em sermos aves, enquanto os outros esperam o pouso dos seus aviões, apertados numa poltrona cinza,  com o serviço de bordo em um sorriso engessado da comissária. Pensei que com as nossas asas modestas abertas em um céu ilimitado não chegaríamos rápido, mas podíamos ir longe e bem alto. Pensei em termos a visão das coisas que não queremos para nós, mas em nós; guardá-las na nossa caixa de memórias. Pensei em pertencermos ao céu, ao espaço, ao que não tem paredes, móveis e cadeados.
  Pensei também em viajar de trem, moto ou veleiro. Viagem que não tivesse um destino pronto, exato, hotel marcado, atrativos de postais obrigatórios, mas que tivesse música, suspiros e encontros. Pensei em férias que não acabassem, mesmo na cidade, trabalhando e nos ocupando, também, em sermos felizes.

  Pensei em sermos carnaval em agosto, natal em maio, páscoa em novembro. Comemoração sem o peso dos avisos, confirmações, sem as exigências protocolares dos rituais. Só um vestido, um perfume, uma bebida, um prato, música e uma dança, disso você bem sabe a importância. Pensei em convidar somente os mais próximos: a moça da farmácia, o zelador daquele prédio que sempre me cumprimenta, a menina do 201, porque ela gosta de festas e traria balões e alegria, o viúvo da rua de baixo, a estrangeira que divide a mesa conosco quando vamos ao mesmo café. Pensei em fazer alguns convites a mão e ir entregá-los pessoalmente, frente a frente, gente a gente. Pensei em comprar um vinho, taças novas, nada caro, mas novos, sabe? Com cara de festa. Pensei em colocar algumas luzes coloridas no coqueiro do jardim, um tapete vermelho na porta de entrada, o que acha?
  E sermos festivos em plena terça-feira à noite. Sem amigos secretos, ocultos, invisíveis; só conversas madrugada a dentro. E acordaríamos mais com sono do que de ressaca.

  Pensei em não corrigirmos mais os textos que não são nossos e nem com os nossos sermos tão metódicos, deixemos para o editor as questões ortográficas, brinquemos mais de escrever, sem permissão dos pais; na lama, no caos, na subida do balanço, na escalada secreta aos muros altos e árvores frutíferas. Pensei em não julgarmos mais as decisões que precisam ser tomadas ou adiar as nossas escolhas. Pensei em sermos mais leais, menos escorregadios, mais tranquilos e menos desesperançados; mesmo nesses tempos de agora, que mais exigem das nossas crenças.
  Pensei em experimentarmos mais sabores, compramos menos enlatados, embutidos, massas prontas e aprendermos a ter paciência com os livros de receitas. Pensei em corrermos mais riscos, ensaiarmos menos e deixarmos o roteiro mais aberto ao improviso; para sabermos mesmo se somos bons atores.

 Pensei em procrastinarmos apenas a dobra do guardanapo, a virada da página do romance, a despedida no domingo à noite, o final dos dias. Pensei em irmos deitar como se fosse o nosso último dia na Terra, dormirmos como se a noite fosse eterna e acordarmos como se a manhã fosse o nosso nascimento; todos os dias experimentaríamos a morte, a eternidade e o começo de tudo. Seria bom, não seria?
  Pensei em ouvirmos Beatles de novo, porque a música deles parece sempre nos encontrar, já reparou? Fujo, corro, mudo da vitrola para o stereo, do stereo para o MP3 e celular e eles sempre aparecem do nada: numa travessia displicente entre a zona sul e a zona norte, numa ida ao cabeleireiro, no corredor do prédio do trabalho. Eu escovando os dentes e, de repente, escuto Norwegian Wood. Acho que os Beatles gostam da gente.

  Pensei em  não sermos mais cruéis nem por ironia,  por vingança ou necessidade; nunca. Nem comentário, nem pequenas notas nos nossos artigos, nem em mensagens de grupo, nem em pensamento. Pensei em sermos mais limpos, mais generosos, verdadeiramente mais ternos. Antigamente ternura era tão mais fácil, lembra? A gente passava em frente a uma casa e as pessoas dentro delas, das janelas ou atrás dos portões, sorriam com os olhos para gente; as pessoas davam laranjas, goiabas ou pitangas, em sacolas, quando voltavam da casa de parentes na roça; resgatavam o nosso gato, quando ele fugia, enviavam cartões de natal e desejam um bom domingo, todo domingo. Eu lembro de gente que, até, pedia desculpa por qualquer coisa.
- Desculpa qualquer coisa, viu?
Era terno isso, não era? Lembra?

  Pensei em andarmos descalços, em casa sempre e fora dela, quando fosse possível. Aterrar os dedos, a sola dos pés e os calcanhares àquilo que nos mantém, nos carrega, nos conecta ao espaço em que habitamos. Sem solados, saltos, cadarços, sem meias, sem mesuras. Pés no chão, achatados, nus; despudorados e desbravadores no chão, pelo chão.
  Pensei em chorarmos mais em público, a última vez que eu fiz isso, há duas semanas foi tão libertador e, ao mesmo tempo, pareceu tão peculiar. Se fizéssemos mais, as pessoas acostumariam logo e depois, ninguém se constrangeria de se emocionar em público; é tão bonito, sabe? Eu acho. Pensei em não nos negarmos às emoções nem entre desconhecidos; é um jeito de não sermos mais estranhos uns aos outros.

  Pensei em não lermos mais as previsões astrológicas, no final do ano, sobre o ano vindouro; não em deixarmos de acreditar nelas, mas não sabermos delas. Só não vermos, a cada mês, as possibilidades de prosperidade se esvaírem. Viagem para o exterior, amor correspondido, herança inesperada, fortalecimento de amizades, cuidados com a saúde e promoção no trabalho não cabem nos nossos doze meses, não assim, tão bem organizados e dispostos.
  Pensei em não fazermos aquela tatuagem, marca-signo de uma profundidade que já nos ocupa, antes mesmo da pele em tinta. Pensei em avançarmos duas casas e não recuarmos mais no jogo, aprendermos a perder sem adiarmos nenhuma jogada. Pensei em sermos mais acasos, menos certezas e, mesmo assim, nos responsabilizarmos pelo que o outro lê, enquanto ainda escrevemos. Pensei em ouvirmos mais Beatles e usarmos mais as nossas asas.   



4 comentários:

R disse...

Incrível!
Impressionante como manténs tanta qualidade, publicação, após publicação.

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, ainda que tardia neste dia de Santa Luzia de 2017

Querida Amanda,

Dia de Santa Luzia trás consigo duas marcas indeléveis - 1 - manter os olhos abertos contra as maldades do mundo. A crença popular dissemina a ideia de teve seus olhos arrancados, mas a história afirma que morreu por ter se recusado a casar com um playboy de Siracusa, filhinho mimado de um político corrupto da corte romana.

2 - A outra diz respeito à cidade de Santa Luzia - O então Barão de Caxias foi mandado pelo imperador para sufocar uma rebelião em Minas, desta vez comandada pelo Teófilo Otoni (que dá nome à cidade do Vale do Mucuri, sem nunca te-la visitado, mas esta história é longa, interessante e fica para outro dia). Teófilo Otoni (nascido em Nova Serrana-MG, residente no Rio de Janeiro, cidadão do mundo e multibilionário) aliou-se ao Barão de Cocais para sair da tirania imperial (sim, nosso império foi ditatorial, não tinha nada de bonzinho).

O Barão tomou de assalto a cidade de Santa Luzia, onde estavam alguns defensores idealistas do Liberalismo e matou cerca de cinco mil civis, a maioria mulheres crianças e velhos, só para dar um recado aos líderes do movimento. Com isto Otoni e seus aliados baixaram o facho, mesmo sem terem sido atingidos frontalmente (motivos prá lá de maquiavélicos).

O Barão saiu desta carnificina com o título de "O Pacificador". Em função deste episódio, foi mandado para o Paraguai e saiu de lá Duque. Entrou para o rol do ostracismo pelo conjunto da obra. Em 1962, na sanha do pré-golpe, as forças ocultas precisavam de um herói (Tiradentes era ligado aos Liberais, logo ...) e transformaram este homem no maior herói das forças literalmente armadas, dando-lhe o título de patrono. Incrível - Ainda que tardia, Minas se agiganta.

Bem, depois do desabafo, Amanda, Amanda!!!! Que texto é este? Pensei isto, pensei aquilo, pensei aquilo outro - o desejo em si, a vontade íntima, pessoal e intransferível. O desejo!!

Ah! Quantas lágrimas validam as frustrações de desejos sobre desejos sobre desejos. De Lacan vem o ensinamento - desejo é só o desejo de se ter desejo - Desejo é só para ser desejado e pronto. Enfim, nunca ultrapasse a linha amarela, mas o pecado original do casal VIP do paraíso é sempre tentador.

Que bom vir aqui!

Um abraço e obrigado pelo café!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Muito obrigada, Roberto. Pela leitura e estímulo. Que bom saber que tem gostado. Abraços.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 13 de dezembro do desesperador 2017

Querido Paulo,
ainda ontem falei de Santa Luzia...sem saber que hoje era o dia dela...que coisa! História maravilhosa. Aliás, as biografias das santas da igreja católica são impressionantes...muitas e grandes mulheres!

Mas mais impressionada fiquei com a história do Barão de Caxias (depois Duque e patrono...que oportunos o título e a instituição que o homenageou!), não a conhecia. E que triste... É desalentador percebermos que andamos quase sobre as mesmas linhas desde a Ilha de Vera Cruz. Meus inimigos sempre estiveram no poder! ( e meus heróis nem morreram de overdose, não todos). Como saímos disso, Paulo? 2018 não parece ser mais promissor.

Quanto ao texto...sim, o desejo, o desejo do desejo...parece mesmo isto.

Que bom que veio esta manhã (embora eu só possa respondê-lo no final da tarde), com histórias maravilhosas para o café modesto desta casa. Muito obrigada pela companhia!
Abraços