domingo, 7 de janeiro de 2018

O outro mundo que não vemos

  Há um universo  invisível pelo qual passamos todos os dias e que, talvez, seja ele justamente esse muito que nos sustente. Conjunto de coisas ignoradas que ilumina a nossa existência,  espaço onde as nossas vozes ecoam, a manivela que conduz os nossos passos, a força que alimenta os nossos movimentos e que enche os nossos olhos de orgulho e esperança para nos manter visíveis neste mundo que conhecemos.
  Existe um mundo desperdiçado em beleza e aprendizado; um mundo do qual participamos sem saber, atravessamos sem entender, impactamos sem nos responsabilizar. Um  mundo outro que talvez nos ampare neste que vemos, tentamos entender e ao qual chamamos de nosso, como se fôssemos os únicos a fazer parte dele ou, até, que seja ele quem nos obedeça, com a nossa ciência, história e cultura herdadas. Achamos pertencer a um mundo e termos ele, porque desconhecemos outros tantos.

  Cotovelos se esbarram na loja de conveniência e os olhos não alcançam os outros olhos, almas forjadas em mesmas leituras, músicas, desejo de luta e sonhos que trafegam os mesmos caminhos, mas que nunca se declaram, porque não sabem uma da outra. Numa papelaria, um mesmo caderno de capa de couro passa pelos dois pares de mãos, nenhum dos dois o leva, mas uma mão esteve sobre a outra por alguns segundos sem nunca saber.  
  Dois carros se cruzam no trânsito da cidade finita e em cada um deles uma dor de mesmo porte que poderia ser suavizada se não fosse o desconhecimento dos motoristas dos carros com vidros enegrecidos e fechados sobre bancos que não são os seus. Pontes, macas de hospitais, cadeiras de cinemas, elevadores, escadas rolantes e de emergência, pontes, calçadas, filas no banco, correios,  uma figura desconhecida no fundo de uma foto nossa, um arquipélago de encontros que acontecem sem que as personagens possam ver. Estamos lá e eles também estão, mas é um mundo de invisibilidade e cegueira ignorada.

  Caminho na calçada do outro lado da rua  de um edifício sobre o qual quase nada sei, só que existe, tem quatro andares e é amarelo. Instalado na janela do andar mais alto um homem que reflete, na manhã de domingo, sobre aquilo que pode ver. Eu não olharia mais vezes para a figura se não visse, tão concentrado quanto ele, três pombas sobre o seu telhado, na mesma direção que o homem. Os quatro movimentos de pescoço estão perfeitamente sincronizados, as pombas e o homem movem suas cabeças num mesmo sentido, num mesmo segundo. Os quatro olhares iluminam alguma paisagem que, do lugar onde estou, eu não posso saber, porque estou limitada pela minha visão atada ao solo.

  Olho para os quatro e tento compreendê-los. A expressão do homem eu até posso ler, não é grave, sem susto ou encantamento, é pacífica e, talvez, um pouco entediada. Mas as expressões das pombas passam ao largo do meu entendimento; as enigmáticas pombas parecem olhar para os mesmos pontos que o morador do prédio baixo da avenida esvaziada aos domingos, mas são pombas, com olhos de pombas, numa altura superior ao do homem e à minha e não esboçam reações que eu possa ler.
  As pombas são um outro mundo que eu desconheço. Mas eu as vejo, diferente do homem que compartilha com outros três seres de uma mesma visão e não sabe.

  Do alto da sua janela amarela um homem olha um mundo abaixo dos olhos das pombas, um mundo onde elas não estão, em que elas não existem, porque ele não pode vê-las. O que as pombas veem e homem não pode? Elas sabem dele, enxergam o topo da sua cabeça e, distraído, ele acha que está só.
  De repente, passo sob a visão do homem, ele me vê, mas não enxerga, sabe de mim, mas me desconhece completamente. Ele vê uma mulher de malha na manhã de domingo e eu vejo um homem com uma xícara numa janela amarela com três pombas ignoradas sobre o seu telhado. As pombas também se voltam para mim e eu não sei o que elas podem ver. Mais? Menos do que o homem? O que as pombas pensam sobre mim? Somos cinco seres partilhando uma geografia, mas não um mesmo universo.

  Eu também pousei sobre um telhado e vi uma mulher amar sem medida e não ser compreendida, correspondida, minimamente, com a elegância e o afeto que todo ser vivente disposto e apaixonado merece, mas ela não sabe que eu estou sobre a sua cabeça. Eu sou a sua pomba, companhia do seu tédio de domingo e nada posso fazer além de olhar seu amor desacompanhado, caminhando para uma solidão terrível, que é esta: a de amar ilimitadamente a quem cujos olhos estão noutra direção. Sou uma pomba no telhado de uma mulher, um animal  sem arrulhos, sem manifestações, só olhos vidrados e fidelidade de presença.

  Um homem pousado na janela amarela do apartamento no alto de um prédio e a sua ignorância sobre as pombas no seu telhado; uma mulher andando pela avenida, contemplando quatro seres no alto de um prédio e se perguntando sobre o que não é visível, mas devia ser. Como alcançar o que só as pombas veem? O homem acha que olho para ele, olho também é verdade, mas sinto terrivelmente pela sua ignorância sobre os outros mundos, tenho pena da nossa limitação humana.
  O que a pomba sobre a minha cabeça vê e não me comunica? Nunca saberei, nunca saberemos. Mas o outro mundo que não vemos é aquele único que me interessa.



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