Pontual como nunca, esperançosa como sempre. Não precisou bater duas vezes. Um sinal e eu desci.
Ele ainda não subia a rua e eu já procurava o pé do chinelo perdido, debaixo de uma das cadeiras, para recebê-lo. Ajeitei o coque no alto da cabeça, alisei a frente da camiseta com as mãos, a campainha do interfone chamou e eu fui ter meu encontro sonhado.
Caminho pelo corredor com pressa, mas sem tropeços, sem portas na cara, sem tapetes escorregadios. Chego ao portão com o corpo um pouco anestesiado e o sorriso lívido da espera recompensada. Desta vez aconteceu. E parece que todas as outras irrealizadas, subitamente, perdem a cor na fotografia.
Éramos os quatro sincronizados nessa terça-feira de nuvens cinza e neblina: o carteiro, eu, o que eu esperava e o remetente. Eu segurava o portão, de pintura descascada e pinos meio moles, com um dos pés, enquanto assinava o aviso de recebimento. Era uma cerimônia tão importante e quase sem testemunhas; como acontece no que realmente importa. Quase ninguém para confirmar a alegria. Mas ela chegava e não era pesada, superficial ou intocável.
Subi as escadas com o cansaço de quem volta de uma jornada muito longa, atravessa desertos, escava promessas de ouro, luta contra o inimigo sem nome, mas com o contentamento do retorno; assim viva, assim sem grandes sequelas aparentes. Era envelope comum de carta simples, mas que também era desejo muito acalentado.
Era o encontro do sonho com a realidade ansiosa e quase já desistente de esperar à porta. Era o milagre do enlace fortuito; todos no mesmo espaço e tempo. Sem equívocos, sem atrasos ou endereços que não encontramos nunca, sem pneu furado ou erro de anotação na agenda .
Eu era a arrebentação dos meus desejos, que batiam em ondas desesperadas e também os pés que o tocavam suavemente; sem serem completamente afogados.
Lá fora a menina risca no chão os cômodos da casa e espera não ter que voltar para a de tijolos, onde se sente mais insegura do que nesta, de paredes de vento. Quer crescer de hoje para amanhã e virar adulta, assim sem demora, mas se conforma se o milagre for um final de semana na casa da tia.
O quarto desenhado tem uma cama só dela, janelas com cortinas e porta com chave. Como o da tia, do final de semana celebrado.
O milagre do sonho: está salva enquanto imagina e desenha. É feliz quando delimita com giz o que é dela e ninguém pode invadir. Todos os dias sonha com algum milagre: casa, chave, ser dona de si ou, ao menos, não ser tanto dos outros.
No quarto andar do prédio de portão descascado e pinos moles, com uma moradora infinitamente feliz, o músico fotografa seu bem mais valioso. Não é simples lembrança do instrumento que o acompanhou há décadas, é recurso para oferecê-lo a quem possa pagar pelo que antes parecia impossível de negociação.
Desiludido dos milagres que hoje não batem à porta dele, tem a dor imensa da separação, que por ora, é inevitável. Mas não vai desistir de pedir compensações da vida; que não são certas, mas possíveis. Outro tipo de milagre.
Fecho as janelas, tranco as portas, deito-me sem oração, mas, no fundo, ainda há um pedido. Sempre há.
- Mais um milagre amanhã, meu Pai. Só aquele.
A alegria de hoje, perdurará por meses, por anos; possivelmente a lembrança desse encontro no portão não se diluirá nos anos, talvez fique um pouco esmaecido e só.
Mas, ainda assim, peço. Ainda sonho com outros milagres. Que desassossego é ser gente e sonhar. Que inquietação essa de um milagre não ser suficiente nunca.
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