Às vezes basta romper a plasticidade da cereja e encontrar, de novo, a vida
Às vezes nem o esforço empenhado no olhar é capaz de transmutar o simplório, ultrapassá-lo ou trazê-lo à outra perspectiva. Às vezes é só isso mesmo. Nenhuma outra camada. Nenhum sinal no fundo da xícara, depois do café. É verdade que as grandes coisas vêm, tantas vezes, sem embrulho de presente. E ao sabermos disso, estendemos a mão a qualquer oferta ordinária, na esperança urgente de um regalo muito raro. E não é. E não vem e não virá tantas vezes.
Amanhece frio, mas uma faixa de sol no chão do quarto já parece antecipar a tal benesse. Pode ser só sol ou o prenúncio de um dia iluminado. Nenhuma mesa de café à espera, o atraso é o mesmo dos outros dias, mas o banho é o mais quente das últimas semanas. A água na leiteira ferve enquanto enxugo os pés, saio do banheiro, penduro a toalha na área de serviço e despejo a água no filtro com pó de café, pego a xícara no armário, coloco três colheres de leite em pó, cuja lata já estava na bancada e preparo o pão, do dia anterior, para colocar na sanduicheira. É a mesma coreografia há tempos, só reconfigurada nos fins de semana.
O cachorro na casa ao lado late com o mesmo vigor das outras manhãs — durante o restante do dia ele dorme e às vezes solta um arfado — o pão está um pouco torrado demais, mas os meus pés estão secos e não deixei a toalha na cama; pequenas vitórias. A louça fica suja em cima da pia, porque só tenho tempo para me vestir, escovar os dentes e secar um pouco cabelo; imperceptível derrota.
No carro de aplicativo, não há música, tampouco uma análise do motorista sobre a situação atual da política no país; vamos silenciosos e cordiais. Passo a manhã, escrevendo um relatório com números, nenhuma epígrafe, nenhuma figura de linguagem para salvar o acostumado leitor. E talvez seja melhor assim, para ele, sem comoção, sem surpresas. O sol não alcança a sala de onde trabalho, mas ainda está radiante lá fora. O gosto do café com leite permanece o dia todo, mesmo depois do almoço.
Quando termino o dia de trabalho, não há mais vestígio de sol. Resolvo ir ao Centro, antes de ir para casa, porque quero qualquer coisa de especial. Alguma coisa que submeta as manhã de água fervendo, depois do banho, colheres cheias de café ou leite em pó, de latidos fortes de um cão que não é meu, de pão queimado e fruta colocada na bolsa, antes de sair.
Subo o calçadão mais movimentado, olho vitrines, admiro a diversidade de rostos e, finalmente, escolho um café com mesas de bambu e toalhas de renda, para me sentar. A garçonete é acolhedora, esquadrinho todas as páginas do cardápio e nada parece ser capaz de me afastar do sabor do café com leite da manhã. No balcão, tortas com coberturas volumosas e enfeitadas com granulados e pedaços de frutas parecem ser a solução. Me aproximo do vidro e contemplo a beleza de um bolo de três camadas com cerejas no topo. Eu quero a cereja. A atendente corta um pedaço, serve em um prato branco com flores estampadas e bordas douradas. Já não me lembro de que é feito o recheio.
Vermelha, brilhante, redonda e vívida, uma cereja em meio a nuvem branca que cobre um bolo cujo sabor ainda terei que descobrir. Com o garfo, tiro pequenos pedaços de três camadas de pão de ló recheado e levo à boca, a língua reconhece o doce: é creme belga. Mais pedaços e mais reconhecimentos: o barulho da colher, raspando o fundo de uma panela que a minha mãe me dava, antes de lavar a vasilha que ela usava para fazer a sobremesa de domingo; mais tarde, o creme ainda pouco espesso que eu levava à boca para experimentar, quando eu fazia mesma receita da minha mãe nos domingos mais recentes. O leite condensado e a maisena juntos sem nenhuma massa empelotada; era assim o creme da minha mãe.
Mas a cereja eu deixo por último, foi por ela que eu cheguei até ao creme, foi por ela que eu me levantei, fui ao encontro do balcão e recusei dezenas de outros sabores. A cereja é a promessa de um dia invulgar. A cereja não é só a a decoração do paladar. A cereja é a epígrafe, o soneto, a mesa de café da manhã, a música agradável no carro de aplicativo, é o sol no meu cabelo, enquanto eu trabalho. Ela está só, agora, no prato de flores rosas e lilases, com borda dourada.
Então, espeto o garfo na fruta diminuta e vermelha, ela toca os meus lábios e os meus dentes rompem a película vítrea que a encobre. Depois da sua textura plástica, uma parte suculenta e dulcíssima atravessa minha língua e escorre pela garganta. Finalmente, a vida.
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