domingo, 1 de março de 2015

Olhos para o invisível

  O homem no jardim é essencial, o homem do jardim é o respiro maior dos dias tão cheios de vazio. Quando ele se instala no verde, invejo-o; suas mãos pequenas, redondas e grossas de terras antigas são tão delicadas quanto as de uma criança, quando ele emoldura as rosas. As hortênsias sobrevivem por causa do seu trabalho, a terra não seca mesmo sem chuva, porque ele compartilha com elas da sua sabedoria de sobrevivência e do compromisso de mantê-las. É o homem do jardim que me inspira, que me ensina, que também me traz o essencial, mesmo que eu já tenha água suficiente. A sua fidelidade à terra, a sua lealdade com cada ramo ressequido, a sua solidariedade com os brotos que ainda não desabrocharam são partes de um uma seiva da qual já me sinto dependente. 

  A ele, quase sempre, dão ordens, como se ele não entendesse do seu ministério. Dele descontam a falta do feriado, o dia ausente sem atestado médico, as folhas secas e as sementes que não vingaram, mas nunca enaltecem o valor do seu trabalho, nem brindam as vidas que ele mantém, nem dizem o quanto ele é bonito. Da beleza mais autêntica, mas para qual, quase sempre faltam olhos.

  Verem-no em outro estado, verem-no para além do sentido comum dos olhos. Ver o que a princípio não é aparente, mas depois de visto nunca mais poderá ser ocultado. Ver o difícil, para a horda urgente e o óbvio encantador  para os olhos demasiado sedentos de profundezas, de infinitude. O superficial é o que seduz, mas só o entranhado captura lentamente, toma para si os olhos alheios e nunca mais os devolve. Não ver a cor do cabelo, mas enxergar a beleza do vento que o balança; não saber a marca do carro ou a nacionalidade dos sapatos, mas contemplar os dedos experimentados de caminhos, de encruzilhadas, de pedras ou pétalas; não se conformar com  os números, nem idade, data de nascimento, número de anos trabalhados numa mesma empresa, mas se interessar pelas impressões subjetivas de cada tempo. Não decorar a matéria, a música, a fórmula, mas entendê-las e absorvê-las no sangue, nas células, em cada uma delas e nunca mais abandonar o aprendido.

  Enquanto o homem do jardim carrega os sacos pesados de adubo e desperta o desprezo dos transeuntes ao cheiro do esterco,  vejo o profundo sentido de cada gesto dele e toda beleza que o cerca e também sai dele. Trazer cada volume de esterco com o devido respeito, sabendo que só a partir deles as flores vivem. Compreender o excremento como possibilidade de nutrir vida.

  Olhamos tanto e não vemos. Somos vistos e quase nunca sabem de nós. A fatura do seu cartão que não é você, o carro de prestações atrasadas que também não é você, seu emprego estável e enfadonho que não te explica. Seus pais do outro lado do país, teus amigos esquecidos, a camisa do uniforme guardada com a assinatura de toda classe,  do primeiro ano na escola, a cicatriz dos tombos de bicicleta na infância, os erros de ortografia no primeiro caderno guardado pela tia, o apelido que a vizinhança escolheu, o cachorro Pitoco, o gato Bandido, eles é que são você e você os esquece, porque parecem distantes, pequenos e insignificantes, mas são eles o teu adubo. Só  a partir das pequenezas enterradas é que você floresceu.

  E depois de admitir os sacos de esterco é que aprendemos a reconhecer quando a beleza aponta no corredor, sem ver rosto, nem corpo, mas num gesto, num único momento estar certo da beleza maior e nunca mais poder perdê-la de vista; entender quando a alegria se instala, sem fogos, trilha sonora selecionada, mas saber dela através de um sentido maior, assistir do ordinário o milagre mais santo. Eu a vi naquela tarde, naquela sala, naquele instante único e entendi tudo. Fatalmente depois esqueço, mas eu  a vi e ela estava lá, posso não saber da frequência das suas aparições, mas estou certa de que ela vem, ela há de chegar e me contaminar para sempre dela.

  A beleza mesmo é quando os olhos já não se preocupam mais. Bonito mesmo é sentido e não visto. O jardineiro é quem me salva dos dias mornos e cansados de olhares fáceis. Ele é quem me mostra o que só ele, do lado de cá, conhece, quando ele transporta o esterco já sabe que carrega a beleza; seu trabalho me salva desse mundo supérfluo que só vê rostos e marcas de carro. Suas mãos também cuidam de mim. 




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