quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Agora, sem tempo

 Ela me manda uma mensagem e parece feliz, leio a felicidade dela na tela do meu celular; mas não demora muito para ela dar seu próprio nome para a realização porvir: "atrasada". A mensagem chega, interrompe meus próprios sonhos e o contentamento insone invade a minha noite. Eu chamo felicidade, ela acha que é tempo aguardado demais. Dormimos, cada uma com o seu nome escolhido.

   Já é o dia seguinte e eu quase esqueço as últimas notícias, no torpor da noite mal dormida, de um sono - este sim, em atraso - os rostos passam mais rápidos e menos conhecidos do que o normal, quase não falo ou tenho humor para manhã, deixo cada minuto passar por mim, sem nenhum aceno para ele, sem o sofrimento das horas atrasadas demais ou das que chegam sem que eu esteja pronta para recebê-las; a voz que diz: - Vai assim mesmo e daí? Atende assim, descabelada, mal vestida, sem português bonito.

  Entro no ônibus, consigo um lugar perto da janela e olho, mesmo sem vontade de ver,  tudo aquilo que abandono todos os dias e, depois, o que posso tomar de volta. Penso em dormir  até chegar ao centro, mas solidária ao motorista mantenho os olhos abertos e acompanho o embarque de cada passageiro. O último a subir é um homem, conheço-o de outras viagens, sempre meio perdido, atrasado, esquecido. Hoje demorou mais a subir e o motorista esqueceu dele antes de mim, deu partida no ônibus, antes que ele terminasse de entrar. 

  O homem caído no chão, a comoção dos passageiros, o desespero do motorista e eu assistindo a tudo paralisada. Os primeiros socorros, a ambulância, a polícia, a empresa de transportes, outro ônibus, todos descemos e eu - testemunha antiga da vida do homem - vejo-o frágil na calçada e não ofereço nada, nem um suspiro. Seguimos noutro ônibus, desço atrasada no centro, corro demais, dispenso o elevador e aceito a escada como punição para a minha falta de humanidade matinal (treze andares sem descanso).
  
  Na hora do almoço, surpreendentemente, não tenho fome e o cansaço das escadas não me alcança mais, mas um aperto no peito quando lembro da cena vista da janela do meu banco. A imagem que ficou foi a do homem com um dos pés no ônibus e o outro no ar; o pé resoluto, certo, estóico, sem tempo a perder e o outro no ar, sem ter mesmo certeza, sem saber se já era hora ou lugar, querendo ir e também ficar; e, por causa desse hesitante: a queda.

  Certo, acho, foi o pé primeiro, consciente da necessidade de ir, mesmo sem saber para onde, sem tempo   para perder. Chega uma hora - e a gente reconhece quando ela chega - que não dá mais para mudar o pedido, o prato vai ser aquele mesmo; não dá mais para mudar de nome, foi aquele que demos naquele dia e que continuaremos a chamar; não dá mais para adiar a resposta, certa ou errada, ela precisa vir; que a declaração precisa ser feita, correspondida ou rejeitada, ela precisa emergir das mais profundas incertezas. E quando esse momento se mostra, é devorar o prato, é gritar o nome, é dizer com certeza e calar a dúvida, é desnudar-se do pudor e suportar o resultado, qualquer que seja ele.

  Porque o pé não pode mais ficar no alto, sem tempo para ganhar a briga, trocar o prato, inventar uma desculpa, sem tempo para deixar para amanhã. A felicidade que li na mensagem ou o atraso que ela escreveu na sua sorte é também um desses momentos, de colocar os dois pés num mesmo degrau.

 E eu, que com a queda  quase não me abalei, me perturba agora é o pé no ar. O pé que ficou no meio do caminho foi quem derrubou o homem. O motorista é inocente, eu também sou, somos todos inocentes nas decisões alheias. Os treze degraus de punição são para o meu pé criminoso, este que se recusa a escolher um lugar. Culpados os que se deixam paralisar pela dúvida; este é sim um crime sem perdão.



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