domingo, 9 de setembro de 2012

A desconhecida

  Acordou cedo, bem antes da hora que sempre levantava. Mal havia dormido, premeditando a situação toda, algumas horas antes de iniciar sua empreitada. Tomou banho, vestiu uma roupa que estava menos habituada a usar, depois calçou um par de tênis confortáveis, não se olhou no espelho, ajeitou os cabelos sem tanto cuidado, não tomou seu café da manhã, deixou a cama desarrumada e ao sair de casa não respondeu os cumprimentos investidos ao seu nome. E por não querer ser a mesma, tentou fazer sua manhã diferente da habitual.

  Não compartilharia sua resolução com ninguém, não poderiam entendê-la, tentariam dissuadi-la do bem pensado propósito. Desligou o celular e o deixou na gaveta, colocou os documentos na carteira nova, brilhante, vermelho encarnado, guardou-a  na bolsa surrada, antiga e suja, dentro do guarda-roupas, pelo qual ainda  pagava as parcelas. Não leria os e-mails, mensagens ou receberia correspondências; não tinha ainda um nome. Não veria ninguém, não conhecia ninguém, também não a reconheceriam. Desceu até o centro da cidade. Mas a cidade era nova para ela, os nomes das ruas eram desconhecidos, as histórias inéditas. Embora nada fosse familiar, porque escolheu não ter memória, suspeitava que aquele não era um lugar para se construir a vida imaginada.
  Pelo caminho, via pessoas, esbarrava em algumas, desviava de outras, mas não tinha nenhuma referência, nem sentimentos especiais por qualquer uma delas. Rostos desconhecidos, figuras novas, todas vistas pela primeira vez, mas sem surpresas ou alegrias, só vistas.

  Caminhou até um terminal de ônibus urbanos, escolheu entrar no mais vazio, no de cor mais agradável, seguiu intermináveis minutos até o ponto final. Pegou alguns trocados no bolso da calça que a outra jamais usaria novamente e deu ao cobrador. Desceu e seguiu até o prédio cinza, grande (concreto em cima de concreto), ninguém a abordou, subiu até o andar aleatoriamente escolhido, desceu e andou pelos  corredores abarrotados de pessoas produtivas, uns falavam ao telefone, outros se escondiam atrás das máquinas de última geração, alguns até sorriam, sorrisos frios, burocráticos e todos recusados sumariamente por ela. Sentou-se na mesa, na mais distante da janela, não desejava a luminosidade que suspeitava ser da preferência da outra, na outra vida.

  Ficou naquele grande quadrado somente assistindo o passar das horas. Tentou ligar o computador, mas não sabia a senha da máquina, tocou o telefone, mas não atendeu, não sabia como se identificar, não tinha o que dizer. Resolveu não fingir. Ficou parada, olhando os ponteiros do relógio. Durante o almoço, sentou-se ao lado de desconhecidos e comeu um bife suculento, mal passado e vermelho. Comeu todo o bife seguiu até a mesa de trabalho, até seu estômago rejeitar o animal quase cru. Foi levada à enfermaria e dispensada do trabalho pelo resto do dia.  Grata pela sorte de um dia vazio, seguiu até a saída do prédio cinza. Caminhou algumas horas, até encontrar um parque verde, com chafarizes, um lago, patos e crianças risonhas. Sentou-se em um dos bancos brancos e enquanto assistia sem emoção alguma a vida que nunca presenciara antes, dava asas a alguns pensamentos, cortava as longas asas de outros. Resoluta levantou-se e andou até o ponto de ônibus mais próximo, entrou em uma das conduções e atraída por alguma força incontrolável, desceu no terminal rodoviário. Era leve, graças a alegria da liberdade de não ter passado, memória, identidade, rosto, gosto, nem vida anterior; tudo começava ali. Ainda no parque decidiu-se por uma cidade sem nome, comprou a passagem e sem nunca olhar para trás entrou, sentou-se na poltrona do corredor e nunca mais foi vista.

  A outra, a que a acompanhara ao longo do dia incomum, havia ficado solitária no terminal, sem despedidas, sem um abraço longo ou beijo de agradecimento. Mais tarde, voltou para a casa. Tocou o interfone, já que não havia bolsa, nem chaves consigo. Calada entrou na casa e enquanto tomava um  banho  morno, novo, o primeiro solitário do dia, vieram, pela primeira vez, as dúvidas: - Quem entrou naquele ônibus? E quem ficou mesmo na estação? Teria sido a desconhecida a ir embora para o destino também desconhecido ou ambas haviam trocado de lugar? Pensou que era loucura, depois pensou que talvez não fosse e revezava as suposições até a chave do chuveiro desligar. A água fria interrompeu as dúvidas.

  No outro dia, levantou-se, tomou seu banho, vestiu-se e penteou-se cuidadosamente; depois, sentou-se para a refeição da manhã, metodicamente selecionada, pegou a bolsa, despediu-se da família e seguiu a antiga rotina. Vez ou outra, a dúvida sobre quem havia ficado pairava sobre ela, outras vezes, o exercício da imaginação sobre a vida da desertora, consumia seu tempo e pensamentos. Seria a outra mais feliz? E a que permaneceu era uma impostora?
 Quem ficou ou quem foi ela nunca soube, mas sempre manteve consigo a lembrança do dia incomum e a esperança na possibilidade de ter uma outra de si com uma vida muito diversa a sua.

   E como ela se chamava mesmo? Nunca me disse.Talvez devesse ter inventado-lhe um nome. Mas se tivesse um nome talvez nunca fosse embora, poupei-lhe a liberdade, graças a falta de nome.


Nenhum comentário: