domingo, 15 de dezembro de 2013

Das primeiras vezes

  São muitas as dificuldades ao se responsabilizar por uma criança, mesmo que seja por pouco tempo, mesmo que a responsabilidade seja compartilhada ou, ainda, que o nível de comprometimento não seja alto. Por outro lado, conviver com alguém cujas referências sejam tão recentes, tão inéditas e surpreendentes é dos maiores valores da vida. Nenhum olhar é tão repleto de possibilidades quanto o de uma criança.

  Esqueci os nomes da maioria dos meus amigos de escola, os nomes das professoras mais queridas, esqueci do meu super-herói favorito, da cor da minha lancheira, da primeira música decorada, da coreografia da apresentação de final de ano, do gosto da minha bala favorita, do jeito que eu arrumava meu cabelo, do meu truque para não desamarrar o tênis, de que quase nenhuma queda dói, mas que é sempre bom chorar e depois rir de cada uma delas, esqueci do final do meu filme da "Sessão da tarde" favorito, do nome daquela atriz, daquele seriado, do nome do livro dos cavalos, do apelido que meu irmão escolhera para mim. 
Meus dias de descoberta foram se afastando e quanto mais distantes ficaram, mais longe de mim, minhas lembranças permanecem. Ganhei coisas maravilhosas, perdi outras inestimáveis; inventei papéis, segui outras estórias, adaptei roteiros, desconstruí enredos demasiados tradicionais, mas de tudo o que mais me parece mais caro, mais importante e de qual eu me afastei sem perceber, foram as "primeiras vezes".

  Viajar de avião, não se difere em quase nada de fazer o caminho de carro, ônibus ou trem. Mentira! Quando o fazemos pela primeira vez, sem a necessidade de "fingir" que é mesmo uma primeira vez, é sensacional. Tudo é novidade, tudo é diferente. O gosto do amendoim do serviço de bordo é completamente diferente daquele do cinema. Despachar as malas, a espera na sala de embarque, os detectores de metal, os outros passageiros, as solícitas (nem sempre) comissárias de bordo e até a esteira das bagagens é objeto de interesse dos primeiros olhares. 

  Chegar noutra cidade, com relevo, clima e cheiro diferentes - porque todo lugar tem um cheiro característico, mas nos acostumamos ao cheiro do "nosso lugar", porque o olfato acostuma, assim como o olhar - já é uma aventura. Depois, acostumar-se às pessoas, adaptar-se ao jeito de cada uma, gostar ao seu modo, de cada uma delas com seus defeitos inéditos e qualidades novinhas. Os primeiros olhares são os maiores valores da infância.

  Ninguém é cansativo, alterado, rígido, chato, alegre demais, feio ou tolo, porque ainda não é conhecido, ainda não está catalogado em nosso, muitas vezes implacável, arquivo de memória. As pessoas são todas novas, nascidas hoje, assim como cada coisa que as cercam: seus cheiros, vozes, expressões. Sob os primeiros olhares, nos é dada a oportunidade de nascermos de novo. A vida nunca cansa debaixo deles, nunca enjoa ou chateia. Tudo é começo, descoberta e possibilidade. Em tudo cabe alguma alegria.

  Este ano, é possível que o bom velhinho nos faça uma visita e gostaria imensamente de pedir a ele um regalo. Algo que tenho perdido repetidas vezes, mas que gostaria muitíssimo de resgatar: querido, dá-me, sempre que a vida parecer se repetir, meus primeiros olhares de volta. Não quero ser mais moça, mais bonita, mais magra ou graciosa, só quero ter meus olhos de criança para cada coisa, pessoa e evento. Bom é quando a vida sob as nossas janelas, brilha nova e diferente; bom mesmo é ver cada coisa, como se fosse pela primeira vez.



Um comentário:

Ana disse...

acreditas que nunca andei de avião? mas como tu, adoro as primeiras vezes, as primeiras vistas, tudo é novo e cheio de possibilidades. que o velhinho te traga todos os anos um bocadinho dessa capacidade, e a mim também.