domingo, 6 de abril de 2014

A angústia de uma alegria

  É uma sensação de sobressalto permanente, nó na garganta, estômago gelado, falta de fome, apetite desmedido, um sorriso companheiro, mais que de lábios, de dentro; é ver, ouvir, sentir tudo, mas não se apegar a nada, por estar completo, completude passageira, mas suficiente. É desejo de partilha, mas consciência de cuidado. Medo que se quebre, que se acabe, que ao ser exposto, alguém coloque os dedos sujos e manche, arranhe, rasgue, corrompa, modifique irreversivelmente o original e, por isso a caixa, o cadeado, as grades, o disfarce. Tenho algo e finjo não ter. O artigo é de luxo, mas a embalagem é o insuspeito papel pardo, amassado, inúmeras vezes reutilizado. Andamos com o embrulho feio e ninguém sabe o que tem dentro. Alegria devidamente camuflada.

  Alegria  dá medo; por isso, por vezes é mais fácil acostumar-se com a tristeza, porque não queremos nada com ela, rejeitamos compromisso, envolvimento, laço, a repelimos sucessivas vezes, deixamos que ela se canse de correr atrás de nós. Já  a alegria não, é recém-nascido nas mãos do inexperiente, do desacostumado, é o medo de deixar cair, de afogá-lo na banheira, em um segundo de distração, queimá-lo em água terrivelmente escaldante ou matá-lo de hipotermia na friagem mal calculada, por isso, os termômetros, os cuidados, os ensinamentos de família, os olhos da avó, a lição da enfermeira, seguida passo-a-passo, os rituais passados e repassados a cada dia.  Depois do banho, a vitória; pode-se comemorar secretamente a vida não destruída. E, depois do banho a angústia do sono velado, o medo de  parar de respirar no berço e não nos darmos conta a tempo. É conferir a cada cinco minutos, a respiração do rebento: coloca-se uma nuvem fina de algodão perto das narinas e ao vê-la mexer, ter emoção parecida com a do nascimento. Guardar alegria dá olheiras e cansaço, mas a recompensa imensurável de vê-la bonita, pura, nova, existência continuada, intocada e, especialmente, nossa.

  Carregar uma alegria é mais trabalhoso que empurrar tristeza, ausência ou dor, porque a primeira precisa de delicadeza, atenção e cuidados redobrados; já no segundo caso, no descuido é que existe o cuidado.

  Andar com uma alegria guardada é vício de quem não aprendeu, ainda, a se sentir merecedor, quem desconfia dos enganos que o destino pode, a todo instante,  provocar - é comigo isso? - de quem aprendeu a economizar o chocolate da páscoa, o dinheiro da mesada, quem obedecia pai e mãe e só tomava sol até às onze da manhã e depois das quatro da tarde - economia de praia, para preservar a saúde futura. Guardar alegria é burocracia e qualquer burocracia afasta a alegria. Por isso, na ânsia de cuidados, o risco é o de matá-la sufocada. 

  Alegria guardada não gera frutos, não desperta olhares, não pode ser publicamente comemorada, não estampa, não fotografa, não se gaba, nem se sente e por não se sentir, morre solitária, mesmo depois de persistente vigília. Discrição não combina com alegria, publicidade, neste caso, não pode ser pecado. Alegria merece capa de jornal, coluna social, megafone de comício político; o que vem depois, não interessa. Alegria não tem compromisso com futuro: é vivê-la aqui e agora ou sufocá-la e, ainda assim, saber que vai perdê-la.






Um comentário:

Ana disse...

e dá tanto trabalho, aprendemos a esconder-nos dentro destas capas que nos protegem e criamos uma carapaça que só com muito esforço e dedicação deixamos cair... e as pessoas atualmente querem o imediato, não estão para perder tempo... é pena, valha-nos quem ainda se dá ao trabalho de viver as alegrias...