quinta-feira, 10 de abril de 2014

Amor entre sacolas

  Eles são três, mas o barulho e o movimento que provocam é de uma dezena. São pai, mãe e uma filhinha, esta última a mais desinquieta. Enquanto passo tranquila pela sessão de massas do supermercado, desvio da confusão do trio, em disputa pelo controle do carrinho; são dois adultos contra uma menina de 7 ou 8 anos e ela ganha sucessivas vezes, não tanto pela força, mas a custo de gritos e chantagens. Logo, no supermercado, todos se familiarizam com a cena, abrindo caminho para os desordeiros da noite, afinal, quem quer ser atropelado, pisado ou surpreendido pelo agudo poderoso da pequena? Solitários aliviados, agradecem em voz baixa, pelo carrinho pequeno, pela tranquilidade de cada escolha, por não terem que conciliar crises, responder indagações ou  participar de cada negativa recebida com choro, pirraças e destempero.

  Dos três, o homem é o mais imaturo, não quer ceder nunca, não tem paciência com nada e nem se deixa afetar pelos olhinhos enganadores da menina, que vez ou outra, encena uma docilidade, uma gentileza, uma meninice. A filhinha é a mais irascível, barulhenta e selvagem, tudo a desagrada, nada está bom nunca. Recusa afagos, consolos, lições sociais, só aceita bala e biscoito, todo o resto, para ela, não presta. Já a mulher é a refém e, ao mesmo tempo, líder do bando, é ela quem mais se desespera, colocando cada item que a menina derruba pelo caminho ou no carrinho, sem autorização; ela quem recolhe, sem alarde, a bagunça deixada pela filha. É ela também que conversa com o homem, roga por bom senso e com a voz premeditadamente controlada, serve de exemplo para a filha. E é ela quem capitaneia a expedição: - Agora higiene! Agora alimentação! Vamos escolher uma carne! Pega uma sacola para a verdura! Larga isso aí, já te falei!

  Aos poucos, a chefe da gangue vai se cansando, falando mais baixo, perdendo o poder, enquanto pai e filha, seguem em disputa, mais fortes do que antes. Carrinho cheio, param  na fila ao meu lado, meu caixa é rápido e por isso mais cheio, sozinhos eles têm um caixa só para eles. O pai segue para o estacionamento e enquanto a mãe passa as compras, a filha segue mais intranquila do que nunca: tira tudo dos seus lugares, faz pirraça quando contrariada, afasta-se da mãe, faz careta para minha fila, desobedece, rouba sacolas, ignora a mãe, foge das mãos que a procuram, que desejam impedi-la de ser tão insuportável. Olho para os pares de olhos cansados da mãe e não há raiva alguma.

  A mulher é a mãe, genitora de uma rebelde incontrolável, mas ela é além do sangue; o laço que eu não vejo, daqui do meu lugar, é que é o mais forte, o que nunca se acaba. É o terreno movediço, quanto mais a menina teima, mais afunda no afeto da mãe. Quem nunca se viu num amor igual? Quem nunca viveu a sensação de uma amor desses? Não há como negar, correr, recusar.

  Amor não é justiça, sei. Não damos a quem merece, a quem nos ama, afaga, consola e é bonito conosco, mas,  frequentemente, ofertamos a quem a nossa racionalidade preferia ignorar. Ser negado por Pedro três vezes e, ainda assim amá-lo, sem concessões, sem abandono de fato. Amor também é carga duríssima, com pesos, responsabilidades e desobediências sucessivas. Não amo a quem merece, amo, tantas vezes, sem escolha,  a quem preferia ignorar, abandonar na fila. Quando prometo não mais amar, viro as costas, mudo o rumo, mas deixo atrás de mim uma fresta na porta, uma janela entreaberta, meias luzes acesas, para que não se perca nunca de mim, aquele que não merecia, mas a quem não deixarei de amar. Este é o meu peso, está é a minha missão sempre incompleta. Amor não é filhos comportados, voz mansa, obediência. Mas é também, luta, é vergonha pública no supermercado, sacolas desperdiçadas e um pouco de cansaço, mas sem desistência definitiva.

  Na fila ao lado a pirraça acaba, o pai volta sorridente, descansado, pronto para carregar as sacolas cheias. A garota é boa de novo, a mãe sorri agradecida, pelo amor que não desiste, não se entrega, não foge à luta. A mãe ama seu bando; ela sempre amará os seus.

  A sacola leve na minha mão, pesa o supermercado inteiro, não houve luta, nem impaciência, nem provas de  amor, nas sacolas dos felizes solitários, toda a incompreensão e solidão de uma ida ao supermercado, quarta-feira à noite. Despeço-me do trio antes barulhento e, agora, vejo só amor e sacolas cheias de nada.





Um comentário:

Ana disse...

o amor é trabalhoso, e vale a pena:)