terça-feira, 20 de maio de 2014

O exercício das últimas vezes

  A última vez é uma promessa que na maioria das vezes já nasce para não vingar. A última vez que falo, como, calo, falto à academia, dirijo na pista errada, bebo, perdoo, sucumbo, adio, julgo, choro. A última vez é só uma promessa do desejo, da constatação da necessidade de mudança; a última vez voluntária é ensaio e não realidade. As últimas vezes quase sempre nos surpreendem, nos são dadas pelos outros, acontecem para só mais tarde recebermos o aviso de que a última vez nos escapara, aconteceu e nunca mais teremos a oportunidade da volta, de um outro gesto, atitude ou olhar.

  A mulher na TV é comum, simples, mora do outro lado do mundo, não fala minha língua, mas parece a minha mãe, a vizinha, a professora, a irmã. É um documentário que assisto pelo meio, quando trocava de canal, mas a mulher comum me chama, me faz ficar atenta ao que ela diz, mais que na legenda, nos olhos. E ela dizia que quando se despedira do filho na saleta de entrada de uma clínica de reabilitação tinha total consciência de que nunca mais ia vê-lo com vida; era a última vez que o teria nos braços. E ela dizia resignada, olhando para o fundo da câmera com o rosto seco; não que não sofresse, pelo contrário, mas deixava o sofrimento em algum canto, para dar o seu recado de senhora vivida, sofrida, sábia, sobre um último encontro. E sabe-se lá o que isto significa? E eu diante da TV, com um nó na garganta, também sem choro, mas solidária, compreensiva e oca. Nada deve ser tão intenso quanto isto, nada deve ser tão devastador e ao mesmo tempo tão gratificante. Ter alguém a quem se ama nos braços, por uma última vez, e estar consciente da despedida.

  Os primeiros olhares são maravilhosos, porque dão as nossos olhos surpresas, encantamentos, descobertas e a perspectiva de começo, de mais um passo, de conquista secreta. Mas intensidade, desespero, amor maior, talvez seja do universo dos últimos olhares conscientes ou, ao menos, suspeitados. Não por perspicácia ou inteligência, mas mesmo antes da mulher da TV eu já tinha comigo esse exercício de imaginar as últimas vezes. Eu nunca soube, por exemplo, que prato pediria em uma última refeição se fosse condenada à morte, mas sempre fui certa do gosto que teria: nem de medo, nem revolta, nem lástima, só plenitude de gosto, de cheiro, de memória refogada, cozida ou assada. Eu jamais morreria em jejum.

  Por várias vezes eu voltei a amar alguém, depois de pensar em perdê-lo definitivamente. Quando a raiva, decepção, mágoa ou ódio me consomem, finjo  ser o derradeiro encontro, o último olhar e, de repente, com toda a intensidade de uma vida eu perdoo, eu sucumbo, eu desisto de ir embora ou de deixar que o alguém me abandone. Porque a última vez nos dá a real dimensão de um todo, nos afasta do momento, da fatia não digerida e nos aponta o prazer do prato inteiro. É quando me sinto menos humana e mais bicho, sem memória, só esquecimento e instinto. Como um cão que depois de ser sucessivamente rejeitado pelo dono, corre fiel ao chamado deste e submisso agradece por um biscoito, um brinquedo, um afago qualquer. Os cães sabem amar, os cães olham para os seus donos pela última vez todos os dias.

  E depois da mulher da TV, passo as últimas horas do dia, pensando na despedida, na sorte que é a de ter para sempre as imagens de um último instante: o calor do filho, a beleza dos cílios compridos, a bochecha macia, as pálpebras inchadas e gordinhas, as unhas, cada unha, os olhos eternos de um filho, o seu bebê, de novo; pelos últimos e devastadores trinta minutos.  Só o exercício da despedida testa um amor, põe mais desejo, onde o que se tinha era indiferença ou chateação. 

  Só quem olhou para cada coisa e pessoa pela última vez, experimentou a beleza semelhante de um amor animal. Só quem olhou, sabendo ou fingindo, uma última vez se sentiu saciado e grato, do contrário, doerá tanto quando quisermos ver de novo e não pudermos. Em um exercício, vez ou outra, a realidade acontece; a última vez ensaiada pode sim ser a derradeira apresentação.



Um comentário:

Ana disse...

texto belo, cheio de verdades, ter uma imagem do fim permite-nos ver realmente qual é o alcance...