sábado, 24 de maio de 2014

Alma longa, curta dor

   E quando falta fé nos homens, eu assisto a gata de rua, mãe recente, que alimenta os filhotes com a comida que lhe dão, que rouba, que consegue sei lá como, mas que sempre se ajeita, volta à casa vazia, onde abriga os filhotes. Ela que não foge nunca, não desiste, não se enrola, não reclama, ela que não reflete se é bom ou mau ser gato, só é; só sabe ser. Gata manchada, sozinha, mãe de muitos filhotes, todos dependentes de sua força única.

  A gente desiste fácil, ao menos, mente, ameaça desistir. As velhas coisas que parecem se repetir, o inédito que não chega nunca, a dor que lateja, quando chove; às vezes, a alma encurta, encurva, se esconde não sabemos onde. O que pode ser visto é só um amontoado de papéis desordenados na escrivaninha, contas nunca feitas, a tinta apagada dos extratos bancários, anotações perdidas, olheiras de séculos de insônia, convites recusados, outros nunca recebidos, aqueles que aceitaríamos.

  Para alongar um espírito, tempo; não muito, mas o suficiente para não sermos sugados pelo ralo aberto do cotidiano; uma boa história, lida, ouvida, criada, assistida; um poema em um papelzinho delicadamente dobrado de presente, agora guardado na caixinha; conversas atravessando a madrugada, bons braços, abraços quentes, sonhos, os nossos, os dos outros, os quase realizados e os distantes; cama fofa, um final de semana sem hora para acordar. A mulher da casa ao lado, molhando as plantas e o filho gargalhando cedo; o vendedor de gás de terças, quintas e sábados; a música do violino do rapaz, privilegiada de ter o som do violino na minha rua. O sábado nublado que ilumina o quarto; a desistência desistida, é preciso seguir como a gata. Não pensar se é ou ou ruim; só ser gata e voltar à casa, aos filhotes famintos. Porque precisamos da maternidade, da responsabilidade com as muitas vidas que damos à luz diariamente.

  E, porque doar o que sobra não é difícil, nem o que se tem em conta -  acostuma-se sempre com alguma falta -  mas dar o que não se tem, buscar em algum lugar sem saber onde, é a grandeza de uma existência passional. Não desisto hoje, porque alguém, em algum lugar, tem me dado, em demasia, aquilo mesmo que ele próprio talvez  não tenha. A gata é capaz  disto: dar o que lhe falta.

  Com a alma longa, a dor passa, nem a chuva pode fazê-la vir à tona o tempo todo, voltemos então à cama, ainda desfeita e ao violino extenuadamente ensaiado. A desistência ameaçada não será cumprida; a maternidade me chama e eu obedecerei, não cativa, que não sou dessas, mas como a gata; pronta, corajosa, sem reclamações.



Um comentário:

Ana disse...

somos duas, demasiadas vezes dou o que não tenho e é emocionalmente desgastante, é bom, do humano mais humano, mas é desgastante...