sábado, 11 de outubro de 2014

Perdoa por me trair

  Ela não aceitava o casaco ofertado; recusava os conselhos maduros com um suspiro muito público, sem reservas com o seu descontentamento; não ouvia as frases até o fim, mas interrompia ríspida a mulher que para ela só tinha docilidade e maciez; insatisfeita ela afastava o amor, desdenhava do presente que quase sempre buscamos noutros embrulhos mais brilhantes, mais sedutores; embrulhos que enganam com os adornos que nem sempre duram.

  Em frente a loja de departamentos, mãe e filha, num laço emaranhado que os amores eternos tantas vezes se transformam; numa configuração mutante, de um gostar e desfazer, de um estranho respeitar e ignorar, entre um cochicho de confidência e um grito de impaciência; na urgência de liberdade e, ao mesmo tempo, o desejo latente de acolhimento;  na negação do melhor do outro, por outra coisa tão menor, tão fugaz e tão menos importante, mas que arrebata e submete uma alma a abandonar, temporariamente, razão e afetos tranquilos.

  A covardia nossa de todos os dias, só testa certezas. A filhinha que recusa o casaco, tenta, em vão, afastar o amor que ela jamais perderá; ela só é petulante com quem nunca se magoará por muito tempo com a sua rebeldia. Só somos capazes de testar os amores já certos, estabelecidos, indubitáveis, aqueles que a gente sabe que temos para sempre. Amores incertos são regalos muito frágeis que trazemos na bolsa, com todo cuidado e com a necessidade insana de o conferirmos a cada passo dado. Só os amores certos a gente traz na sacola e se esquece deles no caminho, não se atenta, não se ocupa e seguimos levianos com um tesouro, travestido de sucata. Amor cimentado é alvo certo da marreta de aço, que só trinca, sem força para poder quebrar definitivamente. Negamos o amor mais sincero porque, no fundo, a gente desconfia que não merece, que se enganam muito aqueles que nos devotam  sentimento profundo.

  Em frente a loja de departamentos, a mãe afaga a cabeça castanha e encaracolada da filhinha, que desiste de não amá-la e devolve o sorriso doce que a mãe, mesmo quando não o vê, entende que ele sempre existe em algum lugar. Os amores certos é que são testados; o teste é prova de amor cuja dureza magoa, fere, arranca lágrimas e traz um gosto de desilusão para quem nunca se perde no caminho do próprio afeto. Mas, o amargo quase sempre é temporário. Os amores certos, aqueles que nunca nos cansamos de testar, não desistem; são hastes de flores de ferro. Enfeitam e duram.

  Um dia, a filha entenderá o amor sufocante da mãe; um dia, sentirá sua ausência, desejará a voz silenciada e saberá que a sua falta de coragem só testou um amor certo, seguro e cuja delicadeza ela não entendeu a tempo. E desejará perdão, mesmo que saiba já ter sido perdoada, antes da ofensa. Amores certos também pressentem ofensas e, mesmo assim, ficam.    

  Perdoa, amor,  por me trair e  tratar-te como coisa, quando tudo o que você representa para mim é o melhor que vida poderia ter me dado. Perdoa pelas vezes que olhei para você como se fosse um comum, quando, na verdade, é o mais extraordinário dos seres da Terra. Perdoa meu amor acostumado ao seu; meu amor testando o seu; perdoa meu amor errado, minha falta de jeito, meu grito em resposta a teu apelo sereno. Perdoa meus atropelos, meu mau humor, meu sorriso tantas vezes negado a quem sempre me deu motivos para ele nascer. E no fim, perdoa quem testa seu amor, porque esta é a prova maior da sua existência e, se puder, pede perdão a quem todos os dias oferece a alma em troca de um suspiro, ainda que ele seja, menos paciente. Perdoa-me por trair a minha coragem e a mim mesmo; que nunca duvidei do seu amor, só do meu merecimento. As pessoas são sempre assim: erradas de medo. Perdoa os erros, as pessoas e os seus medos. E então, perdoa os seus próprios erros, os seus medos e a si.




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