domingo, 2 de novembro de 2014

Dashumanidades

  "Já era hora"; cravada no relógio esta é a marcação constante. E tudo parece demasiado atrasado, quando acontece, tem-se a sensação desalentadora de que é tarde demais. A TV ligada que não vê, mas que permanece acesa por costume, o silêncio do sábado cercando o  apartamento vazio. Descasca a laranja, leva um gomo à boca, enquanto olha os tijolos empilhados na construção de um muro no prédio do outro lado da rua. - Todo mundo quer segurança. Pensamento baixo, repetição clichê. Passa os olhos pelo prédio e encontra outros olhos que a observam. Descoberta, a invasora se constrange e esconde-se atrás das cortinas. 

  Com a laranja nas mãos, lembra da infância, logo ali, do outro lado da rua, nos olhos curiosos da menina que a assiste. Era menina assim também, curiosa pelos outros, sedenta da vida que ainda não tinha e por isso gostava de olhar para fora, buscando noutras pessoas referências de um futuro. Quando a mãe levava-a nas visitas aos conhecidos ela se dividia entre varrer os quintais ou escadarias da casa que não era dela e se postar na janela de onde pudesse ver os apartamentos vizinhos. Procurava nas janelas abertas, intimidades cotidianas, gente tomando café, um homem com seu cachorro, um adolescente ao telefone, uma mulher lendo, um senhor cuidadoso, estendendo a roupa no varal, observava os gestos, inventava parentescos e se ressentia das despedidas sem cerimônias: a cortina fechada, a saída para um outro cômodo, onde seus olhos não alcançavam. Era bonito aquele tubo azul da televisão deles, a toalha jogada na cama deles, o café que tomavam pensativos, a mesa desarrumada, um bebê aprendendo a andar. A vida alheia em trechos tão desinteressantes aos olhos do mundo e tão necessários para a vida dela. Um futuro que ensaiava, assistindo outros comuns iguais a ela.

  Mas agora, repartindo a segunda laranja, o relógio marca horas atrasadas, tão sem tempo, tão presente na própria vida. Não fecha as cortinas, não se incomoda com a invasão infantil, simula viver sem espectador. Teria gostado de ver a mulher triste, descascando uma laranja, teria sonhado um futuro como o dela, comum, solitário, com laranjas ordinárias. As estrelas das novelas nunca pareciam tão bonitas como as pessoas que assistia das janelas visitadas. Mas o futuro não se parecerá com nenhum assistido, os recortes de vida, quando inteiros, têm outra cara.

  O último gomo é azedo; ela é o futuro de alguém que insiste em olhá-la. O azedo também faz parte da fruta, saboreia mais o último gomo que os anteriores, não quer mais ser uma vida assistida, prefere observar a ser observada. Mas antes de sair da sala, procura os olhos exploradores e acena. Despede-se por respeito e consideração aos sonhos de futuro de uma menina

   De um tempo colado nela, de um futuro caminhando ao seu lado, ombro a ombro, sente pelo que não foi, o que nunca pode ser e, também, pelo que felizmente não é. Há mais ausência no que somos, do que naquilo que conseguimos ser ou ter. Nós somos o que não temos, não sabemos, não realizamos. O humano vive mais onde não foi. Nem futuro, nem presente, nem passado existem fragmentados, o corte só é necessário ao espectador. A vida é longa, é comprida demais, ultrapassa paredes, portas e janelas e só acontece num mundo sem muros, sem proteção alguma. Ela que daria as duas laranjas em troca da janela da menina do outro lado da rua, permanece no que para outra, é futuro e para ela, é só o que tem. E concordam nisto: as pessoas comuns são mais bonitas e a TV ligada, de longe, brilha num azul de fazer chorar. Jogou as cascas na lixeira e foi ter-se com a vida para além do apartamento silencioso de sábado. Não há muros que a protejam da vida. Mais um clichê, lavado na pia da cozinha.



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