segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O lugar onde os nomes não têm vez

  Chegou ao escritório e um vasinho de violeta estava na sua mesa, entre o computador e telefone,um vasinho de flor com um laçarote de fita sintética rosada. Estranhou a novidade, não era aniversário, nem promoção no trabalho, não voltava das férias, nem de licença, filhos - já tinha dois e bem crescidos - então não era por recente maternidade, não era dia da secretária, era segunda-feira abafada e tinha chovido. No envelope branco, o próprio nome, dentro do envelope, o que faria ela se ocupar toda a manhã e depois tarde afora - a ausência da autoria da delicadeza.

  Gostava de flores, de violetas, nem tanto, mas uma gentileza anônima, numa segunda, tinha seu valor e logo as violetinhas amassadas no vasinho de plástico, imitação fajuta de cerâmica, coloriam sua manhã com o frescor e a elegância de orquídeas caras. Um vasinho de flor que acendia a alma acostumada com o cinza do escritório, com a neutralidade dos "bom dias", dos "tudo ótimo", da vida acostumada com as listas terminadas e começadas todos os dias. Um surpresa neste dia revigorava o ânimo, lembrava-a de que ela era merecedora de olhares, lembranças e regalos, passava a viver para alguém, alguém que se importava com ela e a queria feliz e só porque alguém desejava, ela era; porque alguém a observava, ela existia.

  Depois dos minutos em suspensão e da consciência da sua possível  existência para um outro alguém que a quisesse, alguém que a achasse importante o suficiente para o reparo e, depois, regalo; passou a querer um rosto, um nome, uma autoria para tal delicadeza. Passou a manhã investigando possibilidades, tons de vozes ao telefone, olhares de colegas, palavras cruzadas pelo corredor, qualquer indício de uma admiração ocultada; no almoço, não devorou o sanduíche trazido pelo motoboy, mas o saboreou como último, como o definitivo de uma fase que passava; a violeta demarcava o abandono da sua solidão, da sua vivência irrelevante, ela valia, cada pensamento seu , cada inspiração e expiração, dos exercícios copiados da TV, valiam muito. Ela era alguém e a florzinha no vaso de plástico a lembrava disto. Sua existência passava pelo laço sintético, pelas folhas quebradas no transporte, na cor lilás da flor barata, que hoje ganhava muito valor, o admirador em branco e a admiração em flor. A felicidade cujo atraso não despertava ira, rancor ou desejo de vingança, pelo contrário, era toda gratidão e serenidade; chegava num tempo bom, de maturidade, de entendimento, de calma.

  Enquanto comia o sanduíche, presa às provas da sua existência pelo olhar de um outro, apertava os olhos e perscrutava a caligrafia, talvez fosse conhecida ou mesmo a tinta da caneta, entregasse indícios mais fortes. Nada passaria em branco, sem sua minuciosa investigação, até o final do dia teria um nome. E quando o tivesse, outra vida começaria. 

  Alguns telefonemas, documentos despachados, atendimentos, muita calma, paciência e doçura, as violetas trouxeram à superfície a sua melhor face, aquela encoberta pelas pilhas de papéis, emails, post-its deselegantes e o cinza dos ternos em volta. Três da tarde e o mistério é desvendado, uma ligação, uma voz conhecida do outro lado e antes que ela confidenciasse a amiga da surpresa recebida, ela ouvia: - Então, viu que deixei uma plantinha na sua mesa? Gostou? Sempre achei sua mesa cinza demais, faltava uma cor. Ontem à noite fui ao supermercado e lembrei de você. Comprei. Passei mais cedo aí e deixei. Cuida dela direitinho, viu?

  Não era gentileza; ou foi, mas agora não era. Tinha um nome, um rosto, do qual nem gostava, um supermercado ordinário. Detestou a surpresa. Melhor fosse o nome em branco, o anonimato e, então, a gratidão não se dissiparia ao ouvir uma história ruim. Olhou para o vaso, detestou as flores, odiaria as violetas eternamente; amor sem volta. Um vaso de violeta lembrando o quanto de infelicidade cabia nos seus dias e, de repente, odiava violetas, bilhetes em branco, assinados tardiamente ao telefone, nomes conhecidos, a indelicadeza dos anonimatos revelados; fria, mirou o lixo e se livrou das violetas baratas, sem nem tirar o cartão. Não olhou  mais para o laço, nem fita e não tocou no assunto quando chegou em casa, mas sonhou com as violetas e outro nome no bilhete, emudeceu pela manhã e na terça não tinha nada de novo na sua mesa de trabalho; disse internamente que preferia assim. Não preferia, mas tentou acreditar. Pagou pelo anonimato descoberto. Murchou a própria existência, desfez o laçarote barato que era a sua alegria iludida.  Os restos de violeta recolhidos e os seus sonhos de mudança na gaveta do escritório. Hoje mais um dia, sem flores, nem investigação; no almoço, não pediria sanduíche, mas comeria no restaurante caro, aquele que a amiga das violetas disse que "não passava nem perto".

  Se não tivesse clamado por um nome, se resignada fosse só gratidão; se não desejasse nada além do vaso e da alegria vinda com ele, se não tivesse feito planos, nem desejo de publicidade do próprio contentamento e, finalmente, se olhasse para as violetas e nelas só visse amor, mas quis outra coisa além da flor e por isso, matou toda e qualquer possibilidade de beleza. O lugar onde os nomes não têm vez ela até poderia, mas ainda não conseguiu alcançar.



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