quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Sem filtro, sem make

   O prédio é aquele mesmo da passagem de sempre, velho, pinturas sucessivas descascadas, já contei três diferentes em olhadas descuidadas, certamente existem mais. A construção é  das mais antigas, resiste quase sem manutenção, é simples e  destoa do resto da vizinhança,  mas o jardim é, para mim, o mais bonito da avenida, nada demais,  são só rosas e hortênsias, mas são completamente acessíveis. As muretas são baixas, o portão de entrada é completamente inseguro e  só evitaria que um cão entrasse, por isso gosto do jardim: porque ele é de quem o quiser; é modesto, é lindo e é meu. 

  Caminhando pela avenida no domingo de manhã, eu o vejo no jardim. Entregue, com um rolo de pintura nas mãos e um galão de tinta, acho que se prepara para colecionar mais uma demão de pintura na parede que precisaria de bem mais que isso. Acende um cigarro, olha para a parede, depois perde o olhar numa das rosas e, de novo, olha para a parede. Ele não sabe por onde começar, desconfio. O homem não parece um pintor e a aparente dúvida é confirmada a cada passo meu, quanto mais próxima dele, mais perdido me parece. Passo por ele e o cumprimento, desiludido, ele me acena, mas não me dá sua voz, e se desse acho que sairia abafada, tremida e, certamente, denunciaria o seu medo, acho, então por que se sujeitar a algo que não é da sua compreensão? Por que tinta e rolo, se não sabe o que fazer com eles? Ele mora no prédio e vai economizar o pagamento a um pintor profissional? Ele nunca fez, mas precisa de dinheiro? Sigo não compreendendo o homem que não sabe e vai tentar.

  E ele é tão frágil dentro do seu desconcerto, tão ridiculamente desajeitado, sem saber por onde começar e o que fazer; que eu tive ternura, compaixão, identificação. Quis pegar pincel e tinta e sugerir um começo, eu que já ajudei a pintar muitas paredes, teria me acertado naquele espaço. Mas não posso, não pude, o passo é dele e ele é quem precisa fazê-lo. Sou uma pintora contumaz de paredes, saberia por onde começar, mas estamos distantes, ele não me deixa entrar e o portão mínimo me afasta. Abandono-o solitário, no jardim, eu sigo pela rota que conheço, ainda que eu me perca tantas vezes.

  Admiro sua fragilidade despida na avenida principal da cidade. Despreparo público, solidão do "não-saber". É preciso se reconhecer no pior, esquecer, por algum tempo, o que é bom e bonito e receber o escuro; acolher o que é impuro de si e do outro. Isto é o humano. Seu irmão e você não são só os generosos, os líderes benevolentes; são também os facínoras, os criminosos, os inescrupulosos sem limites e os ignorantes completos.

  Acho que humano mesmo é fazer um autorretrato, verdadeiramente, sem recursos que escondam marcas, cicatrizes; sem ângulos ou luzes favoráveis, é reconhecer, a quem quiser ver, o que todos temos de feio, débil e pouco fotogênico. 

  Ele pinta sem saber pintar, eu escrevo sem saber  escrever, é preciso viver sem saber; fazer mais daquilo que não se sabe para visitar o outro lado. É preciso ter mais lados e admiti-los, sem tanta edição. No jardim mais bonito da avenida, um homem tenta compreender as técnicas milenares de pintura em parede e, no final, vai mergulhar o rolo no galão de tinta e começar por qualquer parte. Tem coragem, no jardim.



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