terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O melhor lugar para chorar

  Há choros que pedem cálculo; o exercício simbólico da despedida de um sentimento premeditado por horas, dias, semanas e até meses. Um processo obstinadamente adiado para acabar em uma situação que se deseja ideal. Um choro até a última gota, sem necessidade alguma de explicação, sem testemunhas próximas que possam nos lembrar, algum dia, da água fartamente abandonada que precisa ser esquecida, sem censuras. Há choros que precisam de tempo, lugar e, sobretudo, de um ritual delicado que receba tristezas antigas, vazios inexplicáveis, ausências de todos os tipos acumuladas diariamente. Melhor que não seja público, porque choro acompanhado constrange, geralmente a quem assiste, que perdido, enternecido pela fragilidade de outro alguém pede, roga, implora: - Não chora. 

  Como não chorar? Como interromper um fluxo natural que só precisa desaguar? Chorar também é expandir, é abrir novos espaços para sentimentos outros, se não mais leves, ao menos, mais novos. O choro amplia a alma, alonga memória, areja espaços fartamente ocupados por antiguidades indesejadas.

  Por outro lado, o choro recolhido, aquele escondido em um lugar muito guardado, a mim, também não parece bom, porque permanece ainda sufocado, não vai de um todo embora; a água empoça, encharca roupas, fronhas, toalhas e, por isso, fica ainda um pouco, um resto, que mesmo seco, nos lembra que ainda há o que ser chorado.

  Logo que me mudei, do lado de casa, uma vizinha me surpreendia pelo número de vezes que limpava sua varanda. A casa é simples, não é das maiores, mas também não é muito minimalista, é casa de família, com lembranças materializadas em objetos sem muita serventia, mas de difícil desapego: uma máquina de costura enferrujada, uma outra de escrever para sempre parada, uma vitrola sem uso, o ventilador de alumínio com a hélice completamente sem prumo, um lugar em que qualquer limpeza é bastante trabalhosa. Sem empregada, a mulher sozinha esfregava o piso da varanda religiosamente em três turnos. A primeira limpeza era feita às 5:30 da manhã, às vezes, sob névoa espessa ainda, desafiando invernos  de temperaturas baixíssimas; e a sua água despejada na varanda era meu despertador. Nunca perdi um dia de trabalho graças a sua pontualidade. E durante anos, o mesmo ritual aconteceu na minha rua: água, balde, sabão em pó, esfregão e puxador às 5:30, 14 e 20 horas, nunca falhava. Nos três horários, eu evitava a janela, minha vizinha era muito tímida e parecia não gostar de espectadores - ninguém da família a acompanhava durante esta tarefa - e eu respeitava sua intimidade. Até que em um dia de distração, com a cortina semiaberta, o espelho do guarda-roupas revelou o segredo do seu trabalho tão disciplinado. No meu quarto, às duas da tarde, o reflexo de uma mulher com as faces vermelhas e cobertas de muita lágrima. Persistente ela lavava o piso como quem removesse todas as dores que a encardiam há séculos.

  E por causa da imagem do espelho eu entendi todas as vezes, quando pequena, em que eu me aproximava da minha mãe, passando roupas ou lavando louça e as lágrimas caiam sobre uma camiseta amassada ou a água dos olhos descia junto com a da torneira. E se, por um acaso, eu perguntasse o que era, ouvia um delicado e abafado; - nada não. A mulher do lado e a minha mãe tinham o seu ritual de choro.

  Não sei se a mulher da casa ao lado chorava em cada uma das vezes que empreendia esforço na varanda, mas soube que, durante um período da vida dela, ela lutou contra uma forte depressão. Nos últimos meses a varanda só é lavada uma vez durante toda a semana e vejo a mulher sorrindo no meu espelho com bastante constância. 
 
  Planejei uma viagem para chorar e não consegui. Subi e desci de ônibus escuros sem companhia alguma e nenhuma lágrima veio. Choraria num tango, eu queria muito assistir ou dançar um tango e choraria no seu final. Mas ontem, pela manhã, eu, finalmente, cumpri meu ritual e chorei, chorei todas as lágrimas do mundo quando escutei a queda da água do balde da casa ao lado. Ela lava a varanda com o choro dela. Suas lágrimas têm a utilidade da limpeza de sua casa. Ali era o meu lugar de choro, escondido, solitário e, de alguma forma, partilhado. Ela lavou sua varanda somente uma vez ontem, certamente passaremos mais seis dias sob estiagem. Não adiantou partida ou distâncias que invocassem meu choro; o pranto veio em casa, a vizinha me ajudou a chorar.



Um comentário:

Ana Martins disse...

Olha Amanda eu custo muito a chorar, mas quando o faço, vem tudo de uma vez e quando estou sozinha. Chorar alivia bastante, fico chateada quao quero chorar e não consigo. E um sufoco. Beijo