quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Nós que morremos e nascemos todos os dias

Nos calendários, uma marca para cada dia. Nos documentos, o dia que em que tudo isso começou. Um dia será mesmo suficiente para tantas vidas de uma pessoa? Num dia só caberá todo o seu começo? Quase sempre, suspeito que seja muito pouco um só nascimento.

  Quando ela chega, aperta sempre o interfone do apartamento onde moro, já recomendei que pedisse uma chave ao síndico ou que solicitasse a ele a entrada no prédio, mas ela não ouve, não compreende. E, por isso, três vezes a cada semana ela me chama, eu a atendo e trocamos algumas palavras, sem nos vermos. Eu já a vi dezenas de vezes, enquanto ela limpava as escadas e eu descia, cumprimentava, mas ela parecia sempre mais amável e disponível ao interfone. Creditava a sua pouca amabilidade a minha inconveniente interrupção do seu trabalho - não adianta as sutis "licença" e "desculpa", quando passos pretos molhados marcam um chão recém- limpo.

  Mas hoje pela manhã, ao interfone, sua voz estava embargada, falava mais baixo, comedida, não avançamos muito no diálogo. Só um seco, "abre, por favor, é fulana". Sem mais. A mulher que me trata fria pelas escadas, o fez pela primeira vez ao interfone. Estranho a voz, sinto falta do afeto ouvido na última terça. Depois, do apartamento, quase não a ouvi pela manhã inteira, sua alegria, seus sucessivos descontentamentos com a torneira, a vassoura ou o produto de limpeza barato, que insistem em comprar, mas ela não gosta. Não escutei suas conversas ao celular. Nem com filha, nem a nora ou nenhum dos quatro netos que moram no Rio - sei deles, porque ouço todas as suas confidências feitas no hall do prédio. Seu trabalho se estendeu pelo início da tarde, o que raramente acontece, já que ela é muito rápida em suas funções; não acompanhou alegremente, nem ao menos, ouviu, suas canções costumeiras; não lamentou a vida da maneira mais leve que eu já assisti - ela gargalha a cada reclamação. Senti falta do que ela tem sido nestes três anos, desde a primeira vez que ela tocou meu interfone.

  Já achava que ela tinha terminado o serviço e partido, quando desci as escadas e a encontrei sentada nos degraus do primeiro andar, perguntei se estava bem, se precisava de algo e pela primeira vez ela me olhou e me viu, porque seus olhos se demoraram mais em mim e sua resposta veio suave, como costumava ser ao interfone. Gostei mais dela assim.

  Respondeu que estava bem, que sentada ali só pensava, fazia planos e, principalmente, se despedia da vida que conheceu até hoje - nesta hora a voz embargou e o nó na garganta precedeu um silêncio curto, mas do qual eu não me esquecerei tão cedo, talvez nunca. A mulher que a todo custo tenta manter claras as escadas do meu prédio, a mulher fria pessoalmente e tão agradável nas nossas conversas de interfone, aos 60 anos - comprovados no documento que tirou da bolsa no seu colo e me estendeu na escada  - se aposentou ontem e hoje veio para o seu último dia de trabalho. "É uma felicidade um pouco triste", foi uma das coisas que me disse no atropelo das palavras que ela tentava organizar. "Trabalho para os outros desde que nasci. Na minha carteira não consta isso, mas sempre trabalhei, a vida toda foi trabalho. Como ser diferente? Não sei ser feliz hoje. Entende?".

 Completamente.

  Ela ainda ficou uns segundos paralisada na escada branca, recostada na grade do corrimão - que esfregava, com uma escovinha pequena de péssima qualidade, uma vez por semana ao longo de três anos - tentando achar uma explicação, um novo jeito de viver, um motivo para sua nostalgia com o fim de um dever duramente cumprido, nos meus olhos. Eu não saberia explicar nunca. Depois de uns minutos, perguntou se eu morava ali, respondi com um "sim, claro".  Perguntou meu nome e número de apartamento e só quando dei-lhe a segunda informação, ela me reconheceu de verdade. "Então é você, o anjo do segundo andar?". De todas as vezes que a encontrei na escada, ela nunca tinha me visto.

  Minha amiga de voz me deu uma abraço muito forte, agradeceu pelas "portas abertas" durante os últimos anos, se levantou e partiu. Antes, ainda se culpou pelo meu nascimento tardio. "Você é muito gentil, não precisava se sentar com uma velha na escada. Porque nós nunca conversamos antes? Julguei mal a sua presença". Uma trabalhadora morreu hoje na escadas do meu prédio, uma outra mulher nasceu, de parto doloroso, no mesmo lugar. Não sei o que será dela. Mas desejo sorte na morte e nascimento concomitantes. 

  Demoramos muito a nos olharmos de frente, ela pelo mal juízo que fez de alguém que tomava como desconhecida e eu pelo excesso de pudor em estreitar relações com alguém pouco disponível.  Que os outros tenham tempo para compaixão com a morte que temos a cada dia, que sejam generosos com os nossos repetidos nascimentos. Algumas vidas antes, mas muitas outras, também, depois. Ela saiu daqui como uma uma jovem recém- libertada do cativeiro, imposto na pobre infância, sem nem lembrar mais do medo do desconhecido confidenciado a mim, na escada; minha última lembrança. A liberdade acena, a chama, essa é a  sua melhor canção agora. Nascemos e morremos todos dias. Alguns nascimentos chegam a doer mais que as mortes, mas sempre e a todo instante o processo segue sem certidão de nascimento e atestado de óbito, só acontece, nos prédios de mármore e ardósia da cidade.



Nenhum comentário: