segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Não fala pra eles

  Fala pra eles que hoje o dia acordou pra brilhar, que o melhor seria se esquecessem o celular e que se, no final da tarde, o céu desabar, fala que tomar um pouco de chuva também é bom . Diz que é para guardarem o preconceito, a opinião e não se preocuparem com a liberdade dos outros não. Fala  que só assim serão livres também, que a cada um cabe a decisão do que é profundo ou superficial; diz ainda que o superficial é só uma questão de avaliação e que o que é dispensável para alguns pode ser estritamente necessário para outros.

  Fala pra eles não olharem  para a roupa que eu uso, nem medirem nos seus relógios os meus atrasos. Diz que eu tenho tido, num mesmo tempo, várias idades e que nenhuma delas se submete a um calendário do conhecimento deles. Fala que hoje eu só vim pra relaxar, que eu vou tomar uma cerveja no bar e que se a sorte me ajudar eu vou ganhar minha aposta no bicho. Diz pra eles que eu joguei no pavão. 

  Fala pra eles que eu sou popular, não aceito menu degustação, nem convite gentil para me enquadrar, que eu gosto de copo barato e de lugar na janela. Fala pra eles que eu coloco o cotovelo na mesa, não fiz curso de vinho e que não sei beber e comer pouco não. Fala pra eles que eu mesma escolho o corte do meu cabelo, que não entendo de visagismo e que não me agrada, nem um pouco, qualquer dever de satisfazê-los. Mas fala,  também, que eu faço meditação, choro com a voz do Milton, recito alguns poemas do Pessoa e rezo em latim, quando eu tenho muito medo; diz que esse é o grau último da minha sofisticação e só.

 Fala que eu tenho dormido muito tarde e acordado muito cedo, mas que a minha preferência é inversa, e no intervalo entre o sono e o despertar eu tenho sonhos muito bonitos, quase sempre tristes, mas com uma melancolia que não faz mal. Diz que nas visões oníricas eu tenho encontros com gente que não cheguei a conhecer, ando em ônibus sem destino e um cachorro late e abana o rabo pra mim. Diz que eu não quero saber o que significa. Fala que eu gosto sempre desses sonhos sem sentido.

  Fala pra eles que eu reconheço alguns dos meus defeitos, mas que eu estou sempre muito  resistente em admiti-los, por força do hábito e jeito de vida; que eu fico vermelha com elogios, mas sigo andando, mesmo que disfarçadamente, atrás deles. Fala que eu não sei cozinhar, que já cansei de tanto esperar e que daqui a pouco jogo tudo para o alto e entro na fila de novo, arrependida; último lugar, mais uma vez.

  Fala pra eles que eu até sei conversar, mas se puder ficar em silêncio, tenho gostado bem mais assim. Que eu não confio na previsão do tempo e que para a astrologia eu não tenho restrição. Diz que se é pra falar de fulano melhor procurar Beltrano ou , quem sabe, Sicrano, porque a fila das vozes ordinárias anda dando volta no quarteirão. Fala pra eles, também, que o mesmo vento que venta daqui é o mesmo que venta de lá, mas que cada um sabe o seu jeito melhor de balançar. Fala que a música aqui acabou faz tempo, mas que eu continuo a rodar e que logo componho outra nova e aprendo a tocar. Fala pra eles que ainda tem muito filme, livro, cerveja, amigo, risada, brilho de sol e risco de chuva no caminho e que qualquer coisa vale mais a pena que querer que os outros cantem a nossa composição. Fala para eles. Não, esquece. Não fala pra eles não. Eles não ouvem, só dizem. Deixa pra lá e faça melhor:  se olha.





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