sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Deixem-na ir à chuva

  Existe um caminho que aparenta natural, mas que, quase sempre, requer um tipo de esforço, uma habilidade treinada para entrega e aceitação, algo bastante tênue, invisível, mas que equilibra as relações de amor. Não há medida universal, é claro, tampouco receita possível ou medida. Porque só é, sendo. Só se descobre em meio a situação. Não há conhecimento prévio possível a nos afastar da dor ou nos impedir o erro; amar se aprende, também, errando as medidas.

  Quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair eu tive tempo de voltar para casa. Minha saída não era urgente, tampouco minha chegada nalgum lugar era aguardada. Mas, ainda assim, quis cumprir o percurso, não voltei, não voltaria. Uma chuva mansa é tantas vezes tão providencial, que não usufruir do banho parece desfeita com o destino. No início, a chuva veio fina, molhava discreta, primeiro a pele descoberta e bem superficialmente, as roupas; sem susto. Aos poucos, a quantidade de água e a velocidade com que caía pareceu aumentar, mas já estando meio molhada, tanto fazia. Não há necessidade de fuga mais. Depois de completamente molhada, não há outra coisa a fazer senão aproveitar os pingos de chuva cobrindo o rosto, conquistando camadas de cabelo, roupas, tênis, meias. Até desequilibrar o passo, atrapalhar a visão e confundir um pouco os caminhos. Tudo de maneira tão sutil, que não faz medo. Chuva quando tomada desarmada, parece nos conectar com uma essência ancestral. Sem máscaras, cerimônias, sem a segurança com a qual nos habituamos tanto. Somos essa espécie desprotegida, caminhando sob as intempéries; luta e, num mesmo tempo, integração com a imprevisibilidade da natureza. Mas, de repente,  lembrei dela que não toma chuva nunca.

  Há dois meses ela chegou e modificou a rotina da família da casa ao lado. Nunca ouvi tantos gritos, tanta afetividade e complacência com um ser. Desde a sua chegada os três moradores são outros. É tanto afago que me incomoda, são tantos os excessos, que suponho que ela se sinta profundamente sufocada. Mas o que mais me perturba é a impossibilidade da cadela tomar chuva. Quando aparecem as primeiras gotas, vão logo resgatá-la, gritam o seu nome e como ela não atende, retiram-na do chão, saem em socorro a quem não quer ser resgatado, a quem nem sabe o gosto da chuva.

  Não permitem que ela vá à rua, que dobre uma esquina, que cheire outros cachorros, que experimente encaixar o focinho nas gretas, vielas, nos pequenos buracos negros entre os lances das escadas dos prédios, que roube a bola dos meninos que, certamente, correriam atrás dela, que lata para um desconhecido ou que persiga os carros, motos, bicicletas. Não a deixam, nem na própria varanda, tomar uns pingos de chuva na cara magra. Não a deixam exercer a sua experiência mais profunda, a de se conhecer e, talvez, se reconhecer noutros cães.

  Escondem da cadela o que é de mais essencial a ela. Aprisionam-na num ideal de animal domesticado. Amam o que fazem dela, o que ela poderá vir a ser, não o que ela é, acariciam-na quando ela é obediente, passiva, cativa. Isolada do que é dela, submersa nas profundezas de um tipo de afeto que não permite a liberdade, talvez ela nunca consiga ser ou saber quem é. Porque, fundamentalmente, o amor devia ser isso: não criar expectativas que limitam, mas acolher e desejar que o objeto amado, se torne cada vez mais aquilo que já é. Que ele possa encontrar um tipo máximo do que é ser. Sem cobranças para que caiba num ideal nosso, sem desejo de que venha ser o que achamos que devem e não o que já são. Sem tolher, sem resgatar alguém de um lugar do qual não desejam ser salvos.

   A vida da cadela da casa ao lado me angustia mais do que a minha própria. A cadela ao lado há de romper a coleira, morder um dos donos ou continuará limitada ao amor que não reconhece os seus latidos mais essenciais. Uma cadela devia, por ela própria, descobrir-se cadela. Não há amor maior do que este. Amor sem coleiras, sem a proteção que subtrai a experiência. Não esperaria que de súbito aceitassem libertar a cadela para as descobertas e todos os riscos relacionados a elas. Mas desejo, verdadeiramente, que a vejam por um instante como ela merece ser vista e que, na próxima chuva, ao sentir  um pouco d'água no pelo, que ela se se sinta selvagem, um pouco apartada deles, mas ainda assim, coberta de puro amor. Daquele que não aprisiona, mas dá asas à liberdade de ser e descobrir o que já somos.

  Tomei toda a chuva do mundo, pensando na cadela da casa ao lado. Ela há de ter a experiência da liberdade, nem que seja um banho de chuva da sua varanda. Todos merecemos ir à chuva.



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