sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Antes que os segundos virem horas

   Não pediu explicação, não fez o menor aceno nesta direção. Mas ele queria, desde o início da decisão, antes mesmo de tomá-la, eu acho, ele já buscava uma justificativa. E isso é muito estranho, porque muitas vezes a nossa resposta nasce de uma justificativa, quando devia ser o contrário. Escolher e só então  prestarmos contas a nós mesmos. Porque é isso que as nossas explicações muito pormenorizadas fazem, tentamos convencer a nós próprios de que uma escolha foi a mais acertada e falamos com o outro, porque precisamos ouvir nossa própria voz, precisamos ter argumentos suficientes em busca de, ao menos, uma noite de paz; isto é um tipo de redenção. Falou sobre os seus erros, sobre onde achava que havia falhado, falou dos dela, dos momentos em que ela não esteve onde ele esperava, sobre expectativas frustradas, mas falou, especialmente, de tempos que não estiveram sincronizados. Falou de descompasso, de contagem errada e fusos muito distintos. Ele disse, ela ouviu, ele se ouviu e talvez, depois, tenha dormido muito bem. Afinal, é preciso não duvidar à noite, incertezas atrapalham a chegada do sono profundo.

  Ele fez uma auditoria precisa de cada passo, cada situação que contrariavam os projetos futuros do casal, as escolhas de ambos que ampliavam as distâncias, os olhares sob perspectivas muito divergentes  e, de novo, falou de um tempo investido, de uma recompensa que  estavam fadados a nunca receberem. Ela o ouviu como uma terapeuta, um padre de confessionário, um parente distante, que não pode e não quer se envolver. Balançava a cabeça e pensava em outro tempo. Nesse que desperdiçavam agora fazendo um balanço inútil, que não ensinaria nada a ninguém.

  Enquanto ele falava dos anos, ela pensou nos segundos, naqueles que ele não havia contabilizado. Na primeira vez que ele a silenciou, ainda que parecesse um gesto distraído, sua voz foi ocultada; naquele dia que ele lhe lançou um olhar de reprovação - e mesmo quando pediu desculpas, o olhar nunca voltou atrás, agora eles viviam um fim e a negação dele de quem ela é ainda a mirava - lembrou do dia que precisou das mãos dele e ele as recolheu, sem se atentar, na pressa, na falta de jeito, na afobação; do atraso dele, no dia que ela achava que era o mais importante da vida dela.

  Ela se explicava internamente e entendia, agora, que na verdade sempre bastou um segundo e o fim era justificado, assim como todos os começos.

  De quando ela viu os olhos dele pela primeira vez, assim bem dentro, as pupilas, os riscos de cor amarela, os pequenos vasos vermelhos; do momento em que ele a abordou, pedindo uma informação e a voz dele ecoou de um jeito e num lugar que som algum havia antes alcançado, de quando eles andavam pela rua e ele disse a coisa mais bonita que ela tinha ouvido e nem era uma conversa séria, preparada, pensada, era uma cena remota entre ambos, comum, mas que passava,  agora, como se fosse recente, ainda há pouco.

  Ele digerindo suas próprias argumentações, enquanto ela pensava que eram nos gestos desapercebidos que a  vida se delineava. Onde não imaginavam gravidade é que era justamente o lugar  da determinação, que eram  nesses encontros não agendados que a vida se resolvia, sem se darem conta. Era um segundo, um pensamento partilhado, um gesto, uma imagem, uma música, um levantar de sobrancelhas, uma irritação, uma calma plena, uma palavra, o som da roda de uma bicicleta e os sentimentos nasciam longamente ou morriam num instante.

  Não pediu a fala, ele também não a ofereceu. Neste último segundo, neste olhar desamparado dele, buscando uma resposta exata, ela entendeu que o fim havia passado por ambos, antes deste derradeiro encontro. Desejou boa sorte, bons sonhos e anos mais felizes para ele, a quem ela dedicou muitos dos seus segundos. Antes de descer o primeiro andar, ela sepultou o último segundo e renasceu no próximo. No fim, ele tinha razão, o problema era o tempo de cada um. Os anos dele se tornaram muito distantes dos segundos dela. Fatalmente, alguém ficaria sempre para atrás. Foi embora levando a sua brevidade e as respostas que ele não pediu para ouvir.




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