domingo, 13 de março de 2016

Aterrissar em campo aberto

   Às vezes o que se espera é muito pouco, quase nada, o óbvio, até. Mas ele não vem, não acontece e a certeza se dissipa assim, como vapor de água fervente, sobe, alcança o alto e mesmo que possamos vê-la perfeitamente, não podemos prendê-la, é da natureza, entende? Ser vapor e água de novo.
  Noutras vezes, a espera é uma dúvida otimista, desejo envergonhado por uma realização extraordinária; esperamos, sem esperar mesmo que se concretize. Uma fantasia acanhada de "se fosse", "se viesse", "se pudesse", mas então, de repente é, chega, pode. É uma realidade. Não é porque acalentamos este sonho, porque cuidamos bem dele ou somos merecedores, não é por força de um pensamento que ele se realiza, porque nem firmeza ele tinha, não é? Era uma só espera desacreditada.

  Não há justiça ou ordem cartesiana, expectativas simples ou complexas podem ou não serem correspondidas e em ambas as situações o que faremos com a irrealização ou o regalo é somente o que somos. Não somos o sonho, somos a sua vinda ou ausência definitiva da sua realização.

  Vieram pelo pai, soube. Adultos que voltam à casa para dar aos pais a mão que agora eles precisam. Não poderia ser mais simples, mas, ao mesmo tempo, parecia extraordinário. Dois homens que desapegam dos cotidianos urgentes, freiam seus carros na rodovia e fazem a viagem de volta, a pé. Como um retorno em penitência, em pedido para um deus que conheceram na igreja de barro centenária, de altar sempre enfeitado com flores - agora, de plástico -, colocam os pés na poeira vermelha da qual se afastaram há tempos, só para trazer à vida alguém de quem nunca poderão se esquecer. É comum, aparentemente; é simples, é vir no tempo de precisão daqueles a quem os laços, vez ou outra, chamam de volta. A expectativa simples realizada com louvor.

  Mas então, a viagem de volta nem surpreende tanto; respondem ao chamado antigo do pai. O meu assobiava a gente, o deles eu não sei. Mas é uma voz da qual nunca desgrudamos de verdade. Passamos anos sem ouvi-la efetivamente, talvez nunca mais, mas ela se incorpora aos nossos dias, vira uma marca tão profunda, que, por vezes, parece real e clara. - Ouve. O pai chamando.
O que comove mesmo é o desabrigo de dois adultos, a possibilidade da finitude de alguém a quem amam, a impossibilidade de estenderem uma vida, de apagarem dificuldades que já se instalaram no corpo de um homem que parecia ser ferro.

  A expectativa maior que se realiza é a da cumplicidade, dos olhares que ambos trocam entre si e certamente com o pai porcelana, que precisam aprender a carregar. Abandonam o GPS, recusam a tela do celular e buscam na ancestralidade dos olhos a aproximação de que precisam. Olhar nos olhos de alguém pode ser uma experiência libertadora, inclusive se livrar do domínio ou influência dessa pessoa. Ou de uma ternura incomensurável, entregar-se, abrir-se profundamente aos olhos dessa outra existência. Nenhuma viagem é tão plena, quanto os olhos dos outros.

  Os laços chamam, ocasionalmente gritam desesperados em campo aberto.  Sobrevoar baixo para ouvir o chamado,  sem muito estudo,  lançar-se ao chão, porque nos chamam, porque precisam das nossas mãos e nós dos olhos deles, atirar-se ao solo sem saber de certeza alguma, só fazer parte da própria terra, se assim for preciso. Não há tempo para doses homeopáticas. A decisão precisa ser à queima-roupa. Esperar o muito ou o pouco, em alguns casos, não faz a menor diferença. Viriam porque são homens que não se acovardam com terra, com lama, nem passado. Eles responderão sempre ao chamado, porque são feitos disto: de atenderem às esperanças da voz que nunca se calará.




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