terça-feira, 15 de março de 2016

Não vamos sair antes das luzes se acenderem

   Esqueceu-se de um encontro nosso marcado de véspera. Liguei, mandei mensagem, mas só recebi suas desculpas quando eu já estava em casa, muitas horas depois. Nada demais, a amizade é antiga e a falta tinha sido esta única. Não suspeitei que era um sinal. Mas depois dessa ausência somaram-se outras, confusões com os dias da semana, anotações perdidas, frigideiras esquecidas no fogo ainda aceso, letras de músicas que cantarolava sempre, nomes de pessoas muito próximas, reuniões, enredos dos livros e filmes favoritos, compromissos profissionais,  as senhas todas, de cartões, de emails, de cadeados. Até a situação toda parecer tão desesperadora e ela esquecer-se de sorrir.  A memória é chave que nos mantêm no mundo; só nos apercebemos disto, quando ficamos trancados de fora.

  Foi um incêndio na vida dela, que começou com pequenas faíscas; como todo fogo arrasador. Apagávamos uma, dormíamos tranquilos e no outro dia outras tantas recomeçavam, até não termos mais água, estratégias, nem vigilância que fossem mesmo eficientes. O campo sendo tomado pelo fogo, ela no meio e nós todos, às margens, gritando por socorro, incapazes de evitarmos a combustão. Não era uma mais fase, não era emocional, não era mais engraçado. Era ela perdendo os horários, os dias, os nomes, o vocabulário e o que sempre me pareceu mais aterrador, suas memórias, seu passado.

  E logo vi uma pessoa inteira ser  fragmentada em um cérebro e suas impossibilidades. As zonas preservadas e as impactadas, estas últimas sempre pareceram dominar a cena. Uma parte de alguém tão brilhante, tão indispensável na sua incompletude agregada, vulnerável às investigações médicas. Devassada nos consultórios, nas cantinas dos hospitais, nas conversas entre amigos, nas reuniões familiares. Ela, pela primeira vez, assistindo a um jogo do qual não entende as regras. Passiva, parece não conseguir nem escolher um time para torcer. Ela perdida no meio do incêndio que ninguém consegue apagar.

  E mesmo quando ela está longe, dói muito. Porque o cheiro da mata queimando não desgruda mais das minhas narinas. Vou para casa e sou acompanhada, a cada metro do caminho da volta, por uma centena de imagens que não se afastam.  Revejo cenas inteiras, pessoas e seus cheiros, encontros que me desestabilizaram, desencontros que me levaram a lugares melhores, mãos que me buscaram, meus pés se afastando ou fincados num mesmo piso, as cores dos quadros dos quais gostei, as paredes cinzas que precisei suportar, as palavras que recolhi e as que ignorei, os ventos, as portas batidas, as cortinas que abri e tudo mais que não me larga; senhas que me abrem para mim. Sou cercada pelo que sou o tempo inteiro, minhas memórias não me deixam só, nem quando tento expulsá-las; sou eu e não me perco, mesmo quando há confusão e desespero. Eu estou sempre para mim. Cheia de mim. Mas e ela?
 
  Ela está se esquecendo. Dos dias, dos nomes, dos sonhos, dos remédios, das promessas, do banho, das palavras, de pentear os cabelos, dos quadros e paredes; esquece-se de quem é. Eu sei. Não há ainda um jeito de parar, seguro cada momento dela para quem sabe um dia, poder devolver a quem sempre foi assídua nas minhas memórias.

  Está na sala agora. Veio para mais um exame e diz, num lampejo de pura lucidez, que a cada luz que acendem nos seus olhos, uma lembrança se esconde. Coloco as mãos dela nas minhas e combino que depois da consulta iremos ao cinema. Ela não se lembrará disso, antes mesmo de encontrar o médico. Mas era o nosso programa favorito. E mesmo quando o filme era muito ruim, nunca abandonamos uma sala de cinema antes dos créditos finais. Esperaremos até o último frame, até acenderem as luzes e dizerem que é o fim. Talvez sermos expulsas da sala, quem sabe. O filme pode melhorar a qualquer instante, sempre me fio a isto. Ela esquece um pouco a cada dia e eu lembro por nós duas, a cada passado perdido no fogo; tenho achado que a minha memória nestes tempos se alargou para abrigar a dela também.




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