quinta-feira, 10 de março de 2016

Então olha o desenho que eu fiz pra você

   O lápis desliza no papel  num traço tão certo, tão objetivo e fino. As mãos são leves  e os olhares gentis; com o próprio desenho, com os modelos que escolhe e, o mais importante, com a vida ao redor. Ele nunca erra, sabe sempre que caminhos fazer. Quando começa um desenho, parece conhecer cada detalhe, ele não constrói, ele revela. Tudo nele é esse ar fresco em suspensão, não se chateia, não perde o humor, não apaga o que já começou; é um homem em sua ilha de calmaria. Ele no fundo da sala com seu lápis e bloco de papel. Tão suave, tão ele. Quantas vezes eu me senti o próprio traçado? Muitas, quase todas. Quantas vezes eu pensei que era ele quem me trazia à vida e muitas vezes foi. Porque estive nas suas folhas; no traço cirúrgico eu nascia em grafite macio. Eu poderia ter amado você.

  Tragado pelos próprios riscos certos, concentrado nas folhas, mesmo assim ele me vê. E se me escondo, mudo de cômodo ou apago a luz, ele ainda sabe quem sou e não me abandona, mas também não busca com insistência. Ele conhece, melhor do que qualquer outro, o jogo de luz e sombra. Sempre entendeu meus lugares escuros. Nunca me pediu para ser só brilhante. Quando abandona a folha e levanta o olhar, eu sei que procura um aspecto meu que o lápis ainda não decorou. Então olha discreto, primeiro pela lente e depois por cima dos óculos; acho que do segundo jeito ele enxerga melhor. Eu poderia tê-lo amado para sempre.

  Foi , todas as vezes, ele quem entendeu e fez funcionar a engrenagem. Tão bem articulada,  peças que corriam sempre fluidas, sem dificuldades, sem necessidade de tanta atenção. Parecia natural, para mim, mas sei do trabalho que simplicidade assim requisita. Ele facilitando a vida, trazendo nos escuros do grafite a arte que eu busquei a vida toda, cozinhando alegre - que bonito ele no fogão -  sorrindo, servindo a bebida, falando da vida. Ele afastando a angústia, escondendo os nossos medos no estojo amarelo, apagando os pequenos incêndios com a borracha branca macia e trancando as portas; assinando os desenhos. Eu queria só amar você.

   E na primeira peça que agarrou, da primeira vez que a engrenagem engasgou, eu suspeitei que não era natural assim, que talvez nunca tenha sido fácil como eu pensava, que talvez seu lápis tenha criado imagens demais, que os desenhos não ultrapassariam as urgências cotidianas. E quando a ilha foi se distanciando e quando as sombras se tornaram mais frequentes, eu encontrei o medo que você, pela primeira vez, não soube guardar em prateleira alta. Ainda assim, eu queria ter amado.

  E não importa tanto o que veio depois ou antes, sentados na sala mínima, você com seu bloco e eu com a minha vontade de amor, ficamos limitados a desenhos; sem falas, sem vontades, sem brasas, para não queimar o papel. E eu que queria amar você, sabia que o grafite, um dia, se quebraria.

  Eu queria amar você, mas parece mesmo que o meu coração não quer a paz. Ele sempre corre para outras ilhas. Eu sei que você é a melhor pessoa. Você deveria ser a resposta também, mas a minha pergunta é sempre outra.

  Uma pena não sermos máquinas. Uma pena que  as engrenagens correndo soltas não sejam o bastante. Você amava mais o desenho e eu, o traço que ele não fazia. Acho que esse desenho agora é meu: no papel, você ainda está riscando, cozinhando - tão lindo - servindo a bebida, falando da vida e eu querendo amar você. Sem luz nem sombra, assim, desenho bem chapado na folha. Eu queria ter amado, mas aprendi mesmo o traçado do fim.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Querida Amanda! Você sua leveza tipográfica (sou muito antigo - rs)

Não vou ficar aqui escrevendo isto ou aquilo sobre amar ou não amar, mas pedi a Cecília que o fizesse por mim:

Ou isto ou aquilo
Cecília Meireles

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Amanda Machado disse...

É lindo, Paulo! Cecília é magnífica. :)