quinta-feira, 14 de abril de 2016

A liberdade é uma lancheira verde esquecida no ônibus

  Acordar com ela, lavar o rosto e vê-la no espelho, mais desperta do que você, olhos fixos, sobrancelhas
em arco. Escovar os dentes e sentir o hálito quente que encosta no seu pescoço, entrar no banho e dividir o apertado box com a inconveniente presença. Não há fuga possível, nem afastamento que dure. Se pedir licença gentilmente, ela chega um pouco para trás, deixa-nos passar e continua a perseguição, mas se bradarmos, se de repente, nos desequilibramos e tentarmos expulsá-la é possível que ela sorria, que nos enfrente e nos vença no combate da maneira mais sórdida possível: pacientemente e incólume. Ela não se esforça, mas é infinitamente mais poderosa que qualquer uma das suas rezas.

   Ela não desiste de você. Ela não te deixará em paz. Hoje ela veio e vai ficar até quando quiser. Conheço-a há tempos, reconheço suas estratégias, aprendi na dor e na humilhação, o que é ser sempre vencida por ela. E por isso, agora, só me entrego; hoje me ofereço, sou eu mesma o cordeiro e a testemunha do sacrifício. Nunca sabemos quanto tempo a cerimônia durará, pode ser algumas horas, dias e em casos mais angustiantes, durará meses e nada se pode fazer, até que ela, suprema,  resolva nos libertar, nunca para sempre, porque mantém uma corda invisível que nos prende a ela. Não me engano, a liberdade é uma linha que ela decide o quanto esticar.

  Por isso saímos de casa juntas, disfarcei sua presença com fones no ouvido, música no último volume, uma página de livro insistente, que durará até a sua partida. Quando ela se instala, nenhuma palavra é capaz de se aproximar de mim. Nem poesias, nem sorrisos, nem gentilezas ou afetos; ela me toma completamente para si. Ela sabe que eu sei dela, eu sei que ela sabe. Mas nos tornamos companheiras, ao menos, com um grau mínimo de cordialidade. Ela só irá me acompanhar e eu fingirei ignorar a sua presença. É o nosso jeito. Um caminho que encontramos para exercemos cada uma o seu papel dignamente. Cumprimos com o destino onde fomos inscritas, não tento mais pular muros, correr e me encolher num beco escuro qualquer. Porque ela é feita de perseguições, ela nasceu para alcançar as grandes distâncias, é implacável e sabe sempre por quais os caminhos vamos andando. Ela é a pergunta e eu a atormentada. Uma só existe a partir da outra.

  Passo o dia buscando algo que me liberte dela, ao menos por um instante, um segundo que me fizesse verdadeiramente desconhecer sua presença. Busco olhos, olhares cintilantes de empatia, em todo lugar. É terça-feira de abril, de um dia abafado de luz e eu buscando alguma salvação; ninguém lê isso num livro, não assistem na tela de uma TV qualquer, não recebem nenhuma notificação sobre o caso no celular, sobre uma mulher cativa de uma pergunta, com desejo de liberdade; mas a procura existe.

  Entramos no ônibus juntas, sentamos ao lado de uma criança e sua mãe que inventa estórias para ela com um folheto de uma loja de departamentos. Ela é serena, criativa, mãe que entende de calma e polidez públicas, mas também se zanga quando o menino, na sua impaciência de criança chuta o passageiro do banco de trás ou puxa os cabelos da mulher a sua frente, sem querer. Mas até as suas censuras são cheias de afeto. Quase sempre me comovo com boas mães em ônibus cheios, é um lugar difícil de se exercer a maternidade, acho. Se preparam para descer, a mãe segura a mochila e uma pasta colorida do menino, além da sua bolsa e duas sacolas, já o menino leva um tubarão de plástico e dois aviões pequenos, esperam o ônibus frear e descem. O menino na frente batendo em todas as pernas que couberam no ônibus e mãe atrás pedindo desculpas. No lugar desocupado por ambos fica uma lancheira verde perdida da pequena mudança.

  Esqueço da minha busca e submissão, por um segundo, alcanço a lancheira, grito ao motorista, desço do ônibus e encontro os olhos da mãe que já buscavam algum objeto esquecido. Aliviada ela agradece, mas seus olhos não cintilam minha busca, entro no ônibus e o rosto do menino me acompanha. O menino intranquilo do ônibus, agora parece plácido, calmo e a salvo do mundo e da pergunta que um dia o acompanhará. Ele segura sua lancheira verde e diz muito obrigado, numa voz que só imagino, mas que leio nos seus lábios. De longe, vejo-o abrir a lancheira e tirar dela o folheto dobrado. Era a estória mais bonita do seu dia e eu a resgatei para ele. Finalmente, recebo o olhar que eu buscava e que já nem sabia mais se encontraria. Ele me afasta da angustia, porque me leva com a lancheira e o folheto amassado. Olho para o lado e a pergunta parece ter ficado no mesmo ponto que mãe e filho. Minha noite é devolvida intacta, dormirei sozinha hoje.

 É uma relação conflituosa, numa primeira mirada, mas no interior dela eu e a pergunta aprendemos a respeitar nossos espaços; ela saiu sorrateira, porque sabe que eu a afastei não por uma súplica desesperada ou por uma ordem hostil, mas porque percebeu que, às vezes, eu encontro alguma possível resposta num lugar qualquer. Por isso, ela solta a linha que nos prende e me devolve ao vento, nunca sei por quanto tempo, mas para essa liberdade eu sempre me entrego. A lancheira verde afastou a pergunta, até a sua volta, não sou mais a atormentada.




Nenhum comentário: