domingo, 10 de abril de 2016

O dia em que ele partiu já nem me lembro mais

   Não sei o dia da partida ao certo. Da despedida eu me lembro muito bem, mas o afastamento veio antes;
disso eu sei. Pena mesmo é ter a consciência da despedida antecipada tempos depois. E isso não é raro, acontece tanto e se repete, mas não sei mesmo o porquê do não aprendizado.
   E depois que foi, fiquei entre o alívio de já ter sido abandonada por ele - e isso não poderia me ocorrer de novo, como um raio que já nos partiu e por isso não ficamos, de olhos amedrontados para o céu, esperando que ele caia de novo - e a culpa de nunca ter feito nada para que ele ficasse, nem ao menos um pedido, por causa já do medo do abandono futuro.

  O dia em que ele abriu a porta, fingi não ver, não estar ali, como alguém que fecha os olhos quando vão começar um assunto e estamos na cama, fingimos dormir para não sermos confrontados com a dúvida depois da meia noite. E para que na manhã seguinte quando somos perguntados sobre o sono repentino a gente diga:
- Sim. Estava bem cansada ontem. E ambos sabemos da mentira.
  O dia em que ele não falou mais comigo, eu pensei no quanto a sua voz era a luz que me apontava para a saída do labirinto, era a direção mais segura, mas intimamente fiquei a comemorar ser independente de novo, sem o risco do medo de um escuro de repente. Preferi o breu total, do que a possibilidade de um apagamento silencioso e contínuo..

  O dia em que ele partiu, eu pensei que ele não sofreria mais, nem agora ou num tempo futuro, quando eu fosse incapaz de fazê-lo sorrir e eu também não teria mais que esperar pelo sofrimento, eu já estava afogada nele e comemorava estar molhada e não mais seca a beira de cair; o momento, enfim, da já sabida queda. No derradeiro dia eu nem estava bonita ou arrumada, segurava um pano de prato velho à porta, tinha nos olhos a sombra do medo se dissipando em lágrimas de alívio e nenhuma vontade de gritar:
 - Fique! Por favor, não vá ainda.
  Ou toda a vontade do mundo de correr e me colocar na frente do seu jipe verde.
Eu preferi já estar arrebentada pela partida a ter que me esconder de medo dela ou ocultar todo o temor num sorriso, numa carinha muito alegre de quem vive na ignorância e entrega.

  Ele não precisaria mais de morfina, nem últimos tragos, nem a visita do padre: - Essa é a última eu sei. Ele dizia e eu me assustava mais. Nem eu precisaria escolher a roupa dele, lembrar dos parentes de longe, imaginar se existiam flores que na despedida não exalassem fim. Agora já eram a roupa, os avisos e as flores, ali nas minhas mãos, materializadas de adeus. O dia em que ele fechou os castanhos brilhantes dos olhos eu já não tinha mais lágrimas de despedida, nem choque, nem susto. Foi só resolução e eu que sempre  achei o pragmatismo de uma miséria sem medida; era eu a pobre agora.

  O dia em que eu vi suas costas, eu sabia que não precisaria viver de novo a angústia de assistir da porta do apartamento, o elevador se fechando e o seu rosto moreno desaparecendo para sempre, levando com ele meu lar, meu sonho, meus dias mais apaixonados de sol. Meu orgulho partido, minha melancolia mais fina recolhidos no sofá vermelho em frente a porta que eu nunca consegui mesmo fechar. Deixei-a sempre aberta para esta despedida; quase sempre a culpa da fuga do cão é do seu dono, que achando amar abre brechas para outros destinos que o animal queira experimentar.

  O dia em que ele partiu não me fez chorar de tristeza,  porque eu já andava triste por este dia que ainda nem  chegado havia. O dia em que ele se despediu, meu adeus há muito tinha alcançado nossos dias, por isso fui gentil, doce e quase conformada. Passei meses ensaiando essa cena final.
Depois que ele se foi, fiquei eu sozinha, perdida de pensar que o meu medo da sua partida fez ele ir embora muito antes do dia em que ele partiu. Por isso nunca saberei de memória o dia mesmo em que ele me abandonou. Quantos choros eu desperdicei enquanto ele esteve aqui. Ou quantos dias eu gastei em choro, quando nem era ainda fim.

  O dia em que ele partiu já nem me lembro mais, mas queria que o tempo voltasse e eu tivesse a coragem de não pensar mais sobre o dia em que o raio cairia, então eu iria sem medo para campo aberto, no meio da chuva e dançaria todas as músicas que ele tocasse para mim, sem suspeitar da despedida. Liberta da dor da espera pela dor. Infinitos seriam a dança, a chuva, nós, a liberdade do amor que não teria medo de fim. Eu o mandei embora no dia primeiro em que  passou pela minha cabeça que um dia ele partiria. E essa dor vai ser para sempre só minha e o jeito, que foi meu, de não saber esquecer que tudo acaba um dia.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Eu aqui no meio de muitos papeis para o fatídico e indefectível Imposto de Renda, pausando em Amanda neste indelicado conto da hora do adeus.
É ruim, muito ruim. Fica sempre aquele gosto de impotência diante do fato consumado. Você deu um toque (sempre) de alta sensibilidade à dor da separação.

Amanda Machado disse...

Ei Paulo! Lugar mais inusitado, onde nunca pensei estar: entre papéis do IR...rs
Obrigada por mais esse passeio. ;)