segunda-feira, 4 de abril de 2016

Me pediu um chiclete e eu soube que ele existia

   Está por aqui há muito. Possivelmente conheça a cidade melhor do que eu. Conheço-o há mais tempo do que alguns dos meus amigos. Nem saberia dizer como aqui, um dia, existiu sem ele; parece que ele inaugurou a cidade, embora nem sei se todos podem vê-lo. Acho que a primeira vez que o vi, eu era adolescente e ia para o curso de inglês, passava pelo parque central e ele me abordou com sutileza, era um rapaz pequeno, já menor do que eu e me pediu um chiclete, eu tinha; dei a ele e nunca mais o homem saiu da minha vida.

  Agora vejo-o mais pela noite, se vou a um bar ou restaurante pelo bairro ou região, ele vagando com a sua solidão e uma sacola azul, se oferecendo para cuidar dos carros que ficam nas ruas, em troca de algumas moedas. Ele é pequeno, todo ele: em corpo, voz e existência. Quando ele chega, quase não nos damos conta, para vê-lo e ouvi-lo é preciso estar de frente e disposto a entender algumas palavras que hoje  só saem  ininteligíveis. Há quase dois anos, acho, sofreu um AVC e desde então, a voz é ainda menor e a paciência de um possível ouvinte é mais requisitada. Há alguns anos tinha a companhia de um cachorro, mas o animal tinha a vida ainda mais frágil que a do dono, morreu não sei onde, morreu nem sei quando. Agora é ele e a sua sacola azul, sozinhos na cidade, que é mais dele do que minha. Sei que ele não nasceu aqui, mas se houvesse justiça, era dele a minha cidade.

   Já ouvi suas estórias dezenas de vezes, quase sempre se repetem, mas nunca o pedi para parar, porque só sei que ele existe mesmo pelo que conta. Gosto dele e do jeito que as suas memórias se entrelaçam com as minhas, gosto de pensar que o meu chiclete me presenteou com a visão da sua existência. Gosto de pensar que talvez sejamos parte um do outro, ainda que eu mal o conheça e que ele talvez nem saiba mais o meu nome. Das suas estórias lembro bastante, uma biografia toda ela escrita na clandestinidade, nos becos escuros, nas casas de papelão, nos pedidos em voz muito baixa, nos olhares cifrados dos garçons e gerentes dos bares, que ele logo reconhece, recolhe o entendimento na sacola azul e segue até ninguém mais ter que vê-lo. Ele conta que saiu de Goiás, menino ainda, diz que não tinha mais mãe, pai ou ninguém por ele, subiu num caminhão qualquer, um dia, e que não conhecia plano, nem rota, diz que chegou aqui porque as pessoas que encontrava vinham nessa direção. Não conta nenhum episódio muito trágico, nada demais, só caronas, gente que conheceu, as cidades e os costumes que o surpreenderam, mas acabo por ficar bem triste enquanto ele narra, mesmo que ele sorria, porque ele parece não se dar conta que a sua viagem foi toda ela conduzida na clandestinidade, no desapego muito cruel, no desenraizamento muito duro. Ele mora e sobrevive na sua invisibilidade.

  Conta as mesmas estórias, às vezes pede algum dinheiro ou cigarro, noutras vezes parece só que deseja ser ouvido, na maioria delas.  Uma vida de clandestino, ser o mais  discreto possível, o invisível, alguém que deseja ser ouvido, mas incomoda quando é visto. Alguém que valida sua existência pelo minuto que um estranho é capaz de ouvi-lo. Reparou quantos te pedem uma escuta por dia? Não é o cheiro das ruas e da impossibilidade de higiene diária, nem o medo da violência, da loucura, o que nos impede de ouvir o homem, sem nos afastarmos, é a tentativa de evitar os clandestinos, que continuamos a jurar que não existem. Queria eu ouvi-lo mais, queria dar ao homem a segurança de que ele pode ser visível algum dia. O clandestino que não me pede mais chicletes, só escuta.

  Entendo essa sua carência maior e a respeito muito. A escuta é uma doação sem igual, é um abrigar as palavras do outro, os sentimentos dele, o que o outro é e precisa que alguém aceite. Escutar é fazer o outro morar dentro de você, mesmo que seja transitório. O ouvir e o falar, ainda que nem existam sons ou palavras, são os movimentos essenciais de qualquer encontro, é nesse lugar que vida se expande e, de repente, clareia o obscuro que é a dúvida do que estamos a fazer por aqui.  Clandestino nas viagens e na vida, o homem se esconde do mundo e só pede a nossa escuta, nada mais. Eu não saberia mais entender essa cidade se não fosse ele, eu não pertenço a lugar nenhum, como ele, mas somos um pouco um do outro, porque daquela vez ele me pediu um chiclete e eu soube que ele existia.



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