quinta-feira, 7 de abril de 2016

Deitar sem sono

  Afasta o lençol, pega as almofadas nos pés da cama. De lado não, de barriga para cima vê o teto, enquanto os olhos não fecham, encará-lo por muito tempo sufoca, ver o limite em cima da própria cabeça dispersa a calma, que talvez trouxesse o sono, rola e tenta a posição de barriga para baixo, mas o cansaço do corpo não entorpece o pensamento: o travesseiro que sufoca, a fronha que nem parece tão macia. Vira de lado e puxa o lençol, dispensa duas almofadas.

  O elástico no cabelo parece apertado, desfaz uma volta, afrouxa e os fios escorregam pela fronha, o pescoço está quente agora, daqui a pouco estará suado, então levanta para prendê-los de novo e a camiseta se enrosca nas pernas, tira o lençol, puxa a camiseta, pega a almofada, se abriga no lençol de novo. Ele vai vir. É ficar bem calma, encontrar uma posição e não pensar nele, que ele chega. Espera o silêncio, mas o silêncio não vem, não passam mais carros, nenhuma TV ligada, nem vozes, mas a quietude de fora, faz o som do coração ficar nítido, começa a contar as batidas, desconfia de uma arritmia, amanhã liga para o médico.Busca o celular e coloca na agenda "ligar médico amanhã coração estranho".

  Abre as duas notificações no celular, lê as mensagens e pensa no que vai responder, não queria se ocupar de nada agora, mas se não responder, quem mandou cada mensagem verá, pela manhã, que ela viu e não respondeu nada. Não quer deixar ninguém ansioso; mas  não sabe ainda o que responder. Coloca uma almofada atrás da cabeça, fica meio sentada, assim talvez pense melhor. - Nunca tomei remédio, ele virá sozinho, vou começar a responder e no meio da primeira mensagem terei, finalmente, o encontrado. É sempre assim, quando menos se espera. Eu não vou esperar e ele chegará para mim.

  Responde a primeira, o texto é grande, cheio de esclarecimentos, tem tempo, o que mais tem agora são horas sem uso. Irá para a segunda resposta e nada da sua não-espera encontrar, por acaso, o que não chega. Guarda o celular, os eletrônicos estimulam o cérebro a se manter alerta. Coça o nariz, pega um livro, vai ler duas páginas e sono virá. Acende a luminária, pega o livro na cabeceira e afunda um pouco mais no travesseiro com a almofada, já terminou mais três capítulos e ele não apontou. Abre a cortina, vai ver o céu, mas a noite hoje nem é bonita, lá fora, um breu desolador, um deserto negro, onde nem vento chega, será que não há mais  insones na cidade? Sozinha no mundo dos olhos que não se fecham? A insônia é a solidão mais completa; dois acordados é opção de companhia, tem conversa, filme, taça de vinho, risada e o quente do amor. Mas acordado e só, é de um abismo profundo, nem as memórias acalentam; tudo parece distante, tudo é coisa de mais de ano.

  Olha para o céu, procura uma estrela, fará dela um drishti, um foco que a levará ao encontro dele, o único que poderá ampará-la nessa solidão de viver hoje. Tenta um mantra, começa a entoá-lo, mas o que significa mesmo? Tenta lembrar a tradução, mas não consegue. Pega o celular e vai no site de buscas. - Ah sim, é isso. Espera, mas aquela mensagem foi mesmo clara? Relê a resposta, resolve fazer umas ressalvas, explicar a explicação, agora sim, três leituras, algumas frases a mais e parece bom. Silencia o celular e o mergulha nas almofadas.

  Busca mais um travesseiro, coloca-o entre os joelhos e certamente ele virá, os pensamentos parecem mais lentos, esqueceu o drishti, ajeitou o lençol e lembrou que chorar talvez adiantasse, quando criança era muito eficiente, o choro sempre a levava ao encontro do descanso. Mas agora, não chegou nem lágrima, quanto menos um soluço; será que não sabia mais chorar? Como pode?

  Lá fora cada vez menos escuro, daqui a pouco o alarme toca e vai ter de novo a vida cheia de gente, sons e a fúria acompanhada que a afasta de um pensamento muito minucioso. Na claridade, as respostas são mais ágeis, menos preocupadas. Sob a luz do sol nem ouve o próprio coração, vai ler na agenda e apagar o medo noturno: bobagem daquela afetada insone.

  De manhã, depois do café, nem vai se lembrar do que a manteve de olhos abertos uma noite inteira. Não chorou, porque queria muito, não dormiu, porque achou que o sono era obediente a ela. Perdeu o sono, porque o sonho consumiu a sua cama e a segurou de olhos abertos; mas na sua busca de esquecimento noturno nem se deu conta do que já  tinha ali nas almofadas, no elástico de cabelo, na camiseta enrolada, na fronha e entre os lençóis.

  Um coração que não aprendeu a dormir, a desligar a luminária do átrio, a se acalmar e esperar pelo dia seguinte. Sobressaltado, tomado por completo, independente das necessidades de sua dona. Coração impulsivo, kamikaze, que se arrebenta e tira o sono de quem nem amar queria. Na agenda, "coração estranho" é muito apropriado, mas vai apagar sem reler. Pela manhã, não se lembrará do único som que a leva pela vida. Vai precisar ainda de muitas noites sem sono para entender em que acorde coração e sonho se encontram.




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