sábado, 23 de abril de 2016

O colchão não faltará

   Se ele tivesse enxergado a tempo, talvez ela não ficasse. Por medo da entrega ou coragem pelo desapego, sei lá. E tivesse só ido embora. Passo de dança, ele se aproxima, ela se afasta, coreografia ritmada pelo descompasso; por marcações  voluntariamente distintas. Se ele soubesse que alguém era vigilante do que ele fazia, talvez fosse menos responsável,  tomasse a chuva, não trancasse a porta, esquecesse de pagar a conta de luz, não vacinasse o cão, nem levasse o gato ao veterinário; e se arriscasse na queda sabendo do colchão estendido lá embaixo. Ou, quem sabe se por vaidade, encenaria sua vida comum como um personagem dos filmes do Allen: atrapalhado, neurótico, quase charmoso. Melhor era não saber mesmo. Desconhecer a observação, suas camadas sendo descobertas sem sentir, só assim era sem desconfiança de invasão ou certeza demasiada no amparo antes do chão. Melhor era esse não-saber liberto das próprias expectativas.

   Do lugar de onde ela o descobre ninguém mais o viu, não podem  olhar da sua perspectiva; a janela é dela, ela é quem limpa a sua vidraça. Desde que começou a vigília, as horas passam, os sonos acontecem em outros lugares; o dele, inclusive, é o mais leve, terno e demorado sono. E ela acompanha-o a cada minuto, sem nunca a pálpebra se fechar por mais de um milésimo de segundo; é só o tempo de lubrificar as pupilas. O tempo não para sob a janela dela, a vida ao redor acontece e ela nunca reclama de alguma hora  perdida, nem se ressente de demora alguma; o mundano não a alcança nesta janela.

  O difícil, tantas vezes, não é o que ela não vê enquanto os seus olhos permanecem nele, nem a vidraça que precisa manter sempre limpa, doloroso é vê-lo errando, entrando por labirintos e escolhendo o lado que nunca o levará para fora. Bastava um grito "para a esquerda" e ele sairia ileso, fácil, lépido. Mas não intervir faz parte deste amor, vê-lo desesperado, dando cabeçadas, gritando a esmo e chutando o ar é uma vida que se precisa experimentar; é uma vida, dentro da própria vida. O zelo dela não pode afastá-lo do sofrimento, a sua vigilância calada é testemunho, memória, não consciência.

  Quando finalmente ele chamar, no momento em que ele conseguir sair de si e descobrir que há alguém que também faz o caminho com ele; quando ele puder vê-la observando-o, ele a chamará para um abraço e ela, então, sairá do lugar em que ele nem  imaginava existir e oferecerá tudo o que colecionou nesses anos para consolá-lo das suas inevitáveis perdas. As flores secas que ele nem se lembrará de onde recolheu, os livros com as marcações que ele desconfiava perdido, uma caixa de chá importado que alguém lhe deu um dia, suas luvas de boxe que usou uma vez, o agasalho verde que todo inverno ele perdia em algum apartamento do centro, uma aliança barata com o nada.

 Ninguém pode apontar os atalhos de uma trilha que não é sua ou remover os obstáculos que estão sob os pés que não são seus. Mesmo que sejam os pés que mais amamos no mundo. O afeto não nos dá o direito de roubarmos do outro a dor de existir. Caminhamos juntos, mesmo se no meio do escuro, da estrada desconhecida e  num silêncio arrasador, nos sentirmos completamente desamparados. Algo sempre nos alcança.

  Secretamente os olhos continuam na janela. Secretamente os olhos vigilantes de alguém que conhece os riscos, os erros, as quedas, mas não grita, não aconselha, não adverte; porque sabe que esta é uma trajetória que precisa ser empreendida sem o aviso do colchão depois da queda. As dores dos outros também a afetam, da vidraça só uma oração atravessa. Essa é a sua intervenção mais humana. A única que pode mesmo, algum dia, alcançá-lo.



Nenhum comentário: