segunda-feira, 18 de abril de 2016

Tem feito frio à noite, ela disse. Mandei-a ao fogo.

   Tem sentido muito frio à noite, mesmo que ao redor seja quente, que o outono esteja abafado, diz que se encolhe entre as cobertas feito um filhote desprotegido de medo, desconsolo e ignorância do mundo que  ainda não ousou conhecer. Diz que tem tido febres, mesmo sem nenhum outro sintoma de doença, arde por horas durante a madrugada e de manhã nenhum sinal de nada, nem calor, nem frio; só o apaziguamento da manhã clara.

  Tem sentido uma fome absurda, ela disse, fome, fome mesmo, mas o apetite parece perdido, não há prazer gastronômico, só desespero, devora o que tiver a mão. Diz que tem achado a comida demasiado salgada, noutras vezes parece faltar sal; nada contenta ou satisfaz seu paladar. Toma água como se estivesse no Saara, não por sede, mas por medo da falta futura, teme ficar aprisionada na aridez, me disse.

  Falou que tem sentido calafrios quando qualquer pessoa, seja alguém íntimo ou um desconhecido ameaça uma palavra, dirigida a ela ou não, ela teme que o verbo se corrompa, morra, seja desperdiçado de sentido e daí, como vai usá-lo depois, se precisar dele? Disse que quando vê homens juntos sempre suspeita de conspiração; parecem sempre querer o que não é deles. Que não sabe mais ler expressões faciais, porque já não difere tédio de calma, alegria de falsidade, ódio de entusiasmo e ainda me perguntou : - Quando foi que esses sentimentos se misturaram na cara?

  Falou que tem sentido um estranhamento antigo, quase ancestral quando está entre humanos, com bichos não, nem plantas, entre ambos diz que se enxerga melhor, se perde menos que, de repente, parece saber exatamente quem é e o que não é. Disse que dentro do peito parece levar uma barragem, que às vezes, a pressão parece ser maior que o próprio corpo, tem medo que as estruturas um dia se rompam. Mas que quando acha que isso vai acontecer, se senta, espera a primeira leva de água bater nas paredes, a segunda e na terceira já recupera a força, esta sim que nunca se arrebenta. Diz que no coração talvez haja concreto, porque permanece firme. Mas tenho dúvidas, se o material fosse mesmo pesado, não sentiria os abalos que ela sente.

  Disse que tem sonhado com dragões, dromedários e lagartos gigantes e nem toma mais ácidos ocasionais e tem se mantido abstêmia. Coloca a culpa dos seus pesadelos no realismo fantástico que diz estar submetida nos últimos tempos, desde que passou a enxergar as coisas. Diz que preferia ter visão ruim, mas o médico disse que ela está ótima e que a sua herança genética não lhe permitirá nunca usar óculos, lentes ou qualquer outro instrumento para os olhos; está para sempre fadada a um visão invejável.

  Disse que quando avista um bando de pássaros se imagina  voar com eles; e mesmo que acompanhe presa ao chão os seus rasantes, giros e rodopios, por alguns segundos se sente no céu, só de observá-los. Diz que quando fecha os olhos, durante a viagem de carro que faz todos os dias, sente o vento e pensa nos cavalos da fazenda do patrão do seu avô nos quais ela nunca subiu, porque não queria andar a cavalo, queria andar como um cavalo.

  Falou que sente um gosto persistente na boca de injustiça, intolerância e indiferença e que por isso escova os dentes várias vezes ao dia. Falou que queria cuspir, mas não aprendeu, a freira batia na boca quando ela ameaçava; queria gritar, mas o pai dizia que que o exaltado perdia a razão em qualquer briga; queria xingar, mas não conhecia um só palavrão que expressasse tudo o que buscava emanar de dentro.

 Contou que tem esquecido lentamente os nomes e os rostos das pessoas, mas que os cheiros e as vozes parecem nunca ir embora dela. Um vez que tenha algum contato, mesmo distante, eles passam a fazer parte dela. Disse que tem ouvido vozes e não as mesmas de uma esquizofrenia, essas não dão comando, não a interrogam, nem se ocupam de falar com ela, só vozes de vida independente, que ela escuta; como uma transeunte ouve a conversa ordinária entre dois vizinhos. Passou a ter a vida acompanhada de vozes e cheiros diversos.

  Me contou tudo de uma só vez, como numa confissão, um pedido de ajuda, disfarçado de confidência e tudo o que eu disse foi para acender o fogo. Não sabe viver neste mundo, mas também não aceita desistir. Não sei, não vi problemas na sua condição, acho completamente adequada sua inadequação, o contrário é que me pareceria absurdo.

  Queria segurar seu coração, tirá-la da febre que dá esse viver, aquecê-la do frio do mundo e dar algum sentido aos seus pesadelos atuais. Queria poder dizer para confiar nos homens e nas suas palavras, para gostar da visão tão privilegiada e da coragem com a qual abriga sua  represa. Mas não sei se o frio passa, se a febre acaba, se viver tão a flor da pele entre cheiros, visões e sons é mesmo bênção ou um completo  flagelo. Por isso digo esta coisa vazia de sentido: vá ao fogo.

  Não ousei consolo, nem cura. Disse que sente frio à noite, mesmo quando faz calor ao seu redor, que não há manta que a aqueça do mundo, eu disse para ela ir ao fogo; ela disse que vai. Para a vulnerabilidade de um coração sensível, para o caso da barragem ameaçar a se romper, só o fogo, só o fogo é capaz mesmo de aquecer nestes dias de outono brilhantes e estranhos.



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