sábado, 30 de abril de 2016

O pão é sem manteiga, certo?

  Está na frente do prédio há quase vinte minutos, parece jovem, não sei se pelo boné ou pelo moletom manchado, porque daqui nem seu rosto eu vejo. É paciente também, porque parece esperar por alguém, sentado no meio fio e não balança as pernas, não procura as horas, nem fixa o olhar num ponto da rua, como quem esperasse algo ou alguém, só faz pequenos círculos imaginários com uma haste de madeira, ferro ou um graveto qualquer,  na beirada do asfalto. Ele se concentra nos desenhos que faz e ninguém chegará a ver.

  Enquanto termina mais um círculo, uma mulher abre o portão do prédio e traz um copo com café e um pão embrulhado no guardanapo de papel. Ele larga a pequena haste, se volta para ela, agradece pela oferta, coloca o copo com café na calçada, afasta o guardanapo e abre o pão, como alguém que confere se o sanduíche não tem mesmo a mostarda ou o ovo que pediu que não colocasse. Ele olha para a mulher e agora eu vejo o seu rosto, não é tão jovem quanto eu imaginava, e faz uma cara de desaprovação para ela. Escuto daqui sua reclamação: - Eu pedi pão puro. Sem manteiga. Isso aqui faz um mal pra saúde, é gordura pura.

  Desconcertada, ela se enrubesce e acho que vai pedir desculpas, mas talvez se lembre que numa oferta, não se faz exigência de tipo algum e responde: - Se não quiser deixa o pão aí, não precisa comer. O café também tem muito açúcar e o cavalheiro não pode burlar a dieta? Jogue fora.
Do outro lado da rua, fico envergonhada pela mulher, sua ironia me fere aqui. Mas o homem do boné não se cala e responde: - Veja senhora, não é uma questão de dieta, porque a senhora pode bem perceber que eu não estou em situação de recusar nada. Peço desculpas se a ofendi, mas jamais jogaria um alimento fora. Há muitos aí que precisam tanto ou mais do que eu.

  Ela se enternece pela resposta articulada e pela humanidade expressa neste pensamento do homem. Não pede desculpas, mas vejo que se arrepende da agressividade. Começam a conversar, enquanto ele bebe o café. Ouvindo os dois descubro que ele mora na rua há menos de cinco anos, mas não sabe o tempo certo, que não é da cidade e que não está sozinho. Ela faz muitas perguntas, mas ele é evasivo, monossilábico e parece não querer muito se expor. O pão continua no guardanapo, sobre a calçada e ela se oferece para trocar, trazer um pão sem manteiga, como ele havia lhe pedido, mas ele diz que não precisa. Ela diz que se ele não vai comer é melhor que ela traga outro, que não tem problema, que passou manteiga pelo costume mesmo. Ela insiste, sente-se visivelmente culpada e com algum tipo de afeição pelo homem na calçada, ela quer matar a sua fome, ao menos nesta sexta-feira.

  Mas ele se recusa, mais uma vez, e diz que o pão está no guardanapo ainda, porque não é para ele:
 - Só queria o café mesmo. Obrigado, dona. O pão é para o meu companheiro. Ele adora pão.
  Ela faz mais perguntas, pega o copo das mãos dele e pede ao porteiro para encher com mais café. Ela continua o seu rosário de indagações e ele prossegue na sua fuga esperta. Mais alguns minutos, ela desiste e se despede dele. Vai embora e o deixa na calçada com o terceiro copo de café e um pão com manteiga que ele não mexeu mais. Quase uma hora depois e eu me pergunto se algum companheiro aparecerá. Se é real, se o pão não será largado ali na calçada  e se houvesse mesmo um companheiro se ele não o havia abandonado.

  O homem  agora segura o pão, quase o abraça, e olha para o início da rua, na subida onde só moradores aparecem. Lembro da conversa de ontem, das palavras duras que eu disse e que agora fazem tanto sentido, como pode o homem criar expectativas a respeito de alguém que talvez nunca apareça? Como a rua não o tornou mais independente e livre da esperança de ser correspondido? Grito com ele, como ele desenhava quando o vi da minha janela, voz invisível para os outros, mas cheia de contornos definidos para mim:
 - Saia daí homem! Coma o pão. Não virá ninguém mais agora. Seu companheiro não volta. Assuma sua solidão, seja uma coragem, homem!
Mas, de repente, seus braços descruzam, eu olho para a subida do morro e um cão altivo corre na direção dele.

  Ele se abaixa, olha bem nos olhos do cão, como nunca vi ninguém olhar para um cão, passa a mão pelo topo da cabeça, até escorregar pelas costas negras do companheiro,  raspa com os dentes a manteiga e dá o pão ao cachorro. Ele veio.

  Por mais de uma hora ele esperou o seu cão, esperaria por um ano, uma vida inteira, acho, pela certeza mesmo da chegada. O artista do invisível, o desenhista das cores que nunca veremos, sabe bem delinear os espaços da confiança e da fidelidade do seu cão.

  Na minha ignorância de amor, na minha desconfiança de animal, que quase foi abatido, eu me sinto profundamente enganada pelo pragmatismo, pela falta de indulgência, pela racionalidade recém inventada. Eu menti para mim quando achei que a independência era minha bandeira mais segura e corajosa. Ninguém está protegido das esperas, não basta sabermos sós, sempre haverá alguma esperança de pertença e partilha nos nossos desencontros. Somos homens de rua sempre a espera do nosso cão. O dele veio, mais tarde aprendo a esperar a companhia faminta do pão que eu guardei para ela. São dois na calçada agora, ele desenha e o cão admira o talento do seu companheiro. São dois e o cão  come o pão sem manteiga que o seu dono guardou só para ele.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Ah, Amanda!
Nestes tempos difíceis de travessia pelo qual passa a pátria amada, achamos que sabemos tudo e muito bem sabido através dos outros (rádio, jornal, TV, internet), mas não temos o saber próprio, a capacidade de discernir entre o certo e o errado, quem é o bandido e quem é o mocinho, que somos bem informados. Que distinguimos um ladrão de um defensor da justiça só pelo jeito dele olhar.
Eu, já no outono da vida, quando leio um texto assim, viajo, viajo muito, para um lugar onde os "círculos imaginários" do outro, seu personagem desta crônica urbana, existem - são reais. Aliás, todas as suas crônicas são de uma densidade urbana tangível, e isto é uma das faces da admissibilidade da evolução da natureza humana.
"Eu pedi pão puro" - é quase que uma elegante chamada à realidade - crua, nua e dura, mas quem ver ver a realidade? - a mulher não desejou vê-la.
Então, voltemos à verdade - na moça Voyeur, que na dor da derrota, faz a analogia entre o enredo testemunhado e a sua vida íntima.
"Lembro da conversa de ontem, das palavras duras que eu disse e que agora fazem tanto sentido, como pode o homem criar expectativas a respeito de alguém que talvez nunca apareça?"
É interessante, pois ela evita a verdade da discórdia do homem que fazia círculos com a mulher que não entendia seus desejos. Achei nisto um ato falho sensacional.
Ela parte para a relação do homem com um ser irracional - capaz de ser fiel sem questionar.
Reconhece a sua ignorância pelo amor - o último parágrafo é o testemunho vivo desta verdade - ela quer ser o cão? Ser fiel, companheira, mesmo sem saber o que significa o amor? É muito interessante.
A verdade, seja lá o que ela for ou representar, nunca será única e exclusiva na espécie humana. Desde Platão é assim, mas os atos ... ah!! os atos - eles denunciam potenciais caminhos para explorar e navegar por estes mares da angústia.
Platão foi o primeiro a provocar a verdade afirmando: “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso aquele que as diz como não são”. Tal como o homem e o cão - preto no branco.
Mas, humm, mas Nietzsche traçou uma reta paralela ao que iniciou a verdade: “Verdadeiro não significa em geral senão o que é apto à conservação da humanidade. O que me deixa sem vida quando acredito nele não é a verdade para mim, é uma relação arbitrária e ilegítima do meu ser com as coisas externas”.
A mocinha, de quem acho que nunca me apaixonaria na juventude, flutua na tese das relações arbitrárias como sendo uma realidade paralela, algo além da física quântica e suas teorias desconcertantes.
Um bom domingo!

Amanda Machado disse...

O que seria deste blog sem os seus comentários para lá de profundos, sóbrios e altamente reflexivos, Paulo? O que seria de cada texto deste sem a sua interlocução tão acertada e bem vinda? O que seria desta que te escreve agora sem a sua psicanálise e filosofia? O certo é que todos nós existiríamos, mas de outra maneira e desconfio que de maneira bem mais pobre.

Muitas concordâncias aqui, o ato falho é mesmo um delator muito esperto.

Neste caos político aí de fora tentamos fazer outra coisa, além de lamentar e desesperançar. Abraços de domingo e desejos de ótima semana!

PS: Preciso do seu endereço para fazer chegar até você alguns destes textos impressos. Um livrinho nascerá no dia 13 de maio, gostaria muito que você o tivesse.
;)