terça-feira, 3 de maio de 2016

Quando ela nos salvou

  Quando ela começou a beber não me incomodei, achei que era uma mulher adulta, assumindo liberdade. Nada demais.
   Quando ela começou a chegar tarde, cada vez mais tarde e de madrugada eu escutava o portão, logo depois de algum carro arrancar bruscamente, achei que era ela se divertindo, vivendo a noite. Ela merecia as melhores sensações. 

  Quando ela começou a se afastar dos amigos antigos, de mim inclusive, e buscar companhias diferentes todos os dias, sem repetição, achei que fazia até bem, parecia querer crescer noutras direções.
   E depois, quando ela faltou ao trabalho uma, duas vezes, achei que pudesse ser gripe, virose ou vontade mesmo de matar o trabalho. Acontece.
   Quando ela gritava no corredor, imitava um gato ou cantava alto a letra errada de alguma música, não me incomodava; me acostumei com a voz dela quebrando os cinzas dos concretos.

   Quando tocavam o interfone dela e ela não atendia e batiam no meu e ela pedia para eu dizer que ela não estava, não achei estranho. Há dias mesmo de não querer ver ninguém.
   Quando ela passava alguns dias fora da cidade, me dava a chave do seu apartamento para eu cuidar dos peixes e ela voltava, batia na minha porta e nos seus braços e pernas eu via os hematomas coloridos que duravam uma semana, primeiro roxos, depois lilases, azulados, verdes, até chegarem ao amarelo e só depois sumirem, eu tive medo da violência que ela encontrava, mas se ela tinha coragem, quem era eu para ficar insegura por ela?

   Mas depois vieram os pais de outra cidade, o ex-marido e uma tia que se revezavam em temporadas na casa dela. E ela parou de beber, passava as madrugadas em casa, o portão já não batia, nenhum carro acelerava. Não buscou outros amigos, não faltou mais ao trabalho, mas ninguém também ouvia suas músicas, nem sons, virou silêncio a moça do 401. O interfone dela já não tocava tanto e no meu, só o homem do gás. Os hematomas também não voltaram a aparecer, mas sumiram com ele seus braços, pernas e rosto; eu a via cada vez menos e cada vez que a encontrava era se parecia menos consigo.

  Num sábado de manhã, um caminhão parou na porta do prédio e começaram a levar as coisas dela. Me despedi da estante que faltava um dos pés, que ela escorava com listas telefônicas usadas e um livro de ioga em espanhol, esses depois achei no lixo e quis guardar para o caso dela voltar. Vi sair a penteadeira que ela herdou da avó, as almofadas com estampa de cannabis que decoravam o seu sofá, os três bancos altos, cada um de uma cor, dois deles eu ajudei a pintar. Carregaram a cama, o violão e o berimbau. Desceram com a TV, um guarda-chuva decorado e duas esculturas de Bali. Tudo coube muito bem no caminhão e ainda sobrou espaço, o apartamento dela era menor que uma baú de caminhão. Faltava ela, tudo descia e era arrastado para o caminhão, os tapetes, as cortinas, mas ela não. Ela nunca saía do apartamento. Até que escutei desligarem as chaves de energia, fecharem as janelas e trancarem a porta. E ela não apareceu mais.
   
  Semanas depois tive notícia, a amiga da vizinha que conhecia alguém que trabalhou com ela, disse que ela estava afastada por alguma licença médica. Quando disseram que ela enlouqueceu, eu tive medo. Não quis me aproximar mais das listas que guardei ou do livro que eu já estava pela metade, nem passar em frente à sua porta. 

 Quando ela enlouqueceu trancaram-na no apartamento em cima do meu, deram-lhe remédios que a faziam dormir mais cedo. E depois nunca acordava de fato, parecia letárgica, sem brilho algum nos olhos. Mas ia ao trabalho, assistia à novela e não imitava gatos no corredor. Depois, tiraram-na do meio das almofadas estampadas, do peixe no aquário, que ficava em cima do aparador, perto da janela; dos três bancos altos, da estante e das listas. Quando ela enlouqueceu, quatro dispostos afetos vieram para lhe apontar a linha, esta tênue da qual estamos sempre suscetíveis a um desvio. 

   Quando disseram que ela enlouqueceu, fecharam as cortinas, evitaram encontros, escolheram seus horários, recolheram sua voz, e até, limitaram seus olhares. Assim, numa etapa por vez, até ela mesmo não se reconhecer mais. Meses depois, quando eu achei que ela nunca mais voltaria, resolvi que colocaria as listas telefônicas e o livro no lixo e pensava ainda muito nela. Mas enquanto eu descia, eu percebi que o apartamento voltava a ser habitado. Bati na porta, ela abriu e dos três bancos só restava um, as almofadas estavam noutro sofá, mas o seu rosto era o mesmo de quando ela enlouqueceu. Devolvi as listas e o livro e ela me pediu para cuidar do peixes, dizer que ela não estava quando tocassem o interfone, me serviu uma bebida e voltou a cantar alto como sempre fez. Me disse que voltou porque não tinha cura. 

  Eu não sabia ainda, mas quando ela enlouqueceu, me libertou da obrigação de nunca enlouquecer. Meu medo não era a loucura, mas o remédio para ela. Quando ela enlouqueceu me salvou de um destino repleto de grades e me abriu as janelas para um mundo onde a dor experimentada não murcha a vida, só dá mais força ao seu crescimento. Ela sentou no banco alto e sorriu para mim de novo, recomeçava  o caminho que ela escolhia todos os dias. Ás vezes chegava de madrugada e bebia, às vezes não.



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