domingo, 22 de maio de 2016

Ele que não se atira de um precipício, mas não teme o vento

Vai passar. E talvez nem volte. É o que todos pensam.
Chega em rajadas muito rápidas, levanta as pontas
das toalhas beges das mesas dispostas na galeria, balança as bainhas dos guarda-sóis, faz uns pequenos redemoinhos com a poeira do chão e depois vai embora. Ninguém se levanta, não desistem do seu melhor lugar. O café é bem bonito do lado de dentro, tem uma decoração delicada, de tijolinhos aparentes, cadeiras de metal desenhadas, quadros em preto e branco, algumas fotos com paisagens europeias e vasinhos de flores de pano lilases.

  Mas do lado de fora, ali no centro da cidade, do lado do teatro mais antigo, com pessoas que passam o tempo inteiro, o café tem outro gosto. Sempre prefiro o lado de fora, especialmente se estiver só. A rua, os barulhos urbanos, as sacolas dos outros tocando a nossa mesa; os olhos de cada transeunte perdidos nos ladrilhos, nas telas dos celulares ou em algum lugar que não podemos ver e, em outras vezes, até se cruzam com os nossos e, por alguns segundos moramos nos olhos de alguém que nunca mais veremos e eles moram em nós, mas vão embora também; os gritos dos ambulantes; as conversas dos estudantes, das vendedoras; a abordagem dos artistas de rua, tudo faz companhia, tudo faz parte de uma cidade que eu sinto falta quando vou dormir. Fora os feixes de sol, que no inverno, mergulham nas galerias entre os prédios mais gelados da cidade. Saímos em busca de um banho de sol como os gatos.

  Mas os intervalos entre as rajadas diminuem, os ventos chegam mais fortes, carregam as comandas de cima das mesas, derrubam o saleiro no chão, abrem o açucareiro e balançam com mais força os guarda-sóis; a poeira sobe até as mesas, o pão de queijo fica muito vulnerável à ventania. As atendentes ajudam na mudança, as mesas do lado de fora, começam a ser desmontadas, só duas continuam na galeria. A minha, porque segurava o café com toda a força e jurei que não sairia e a de um homem que conheço, embora não saiba o nome nem tenha conversado nunca com ele. Conheço-o do café mesmo, do teatro ou do centro. Esses rostos que cansamos de ver, que parecem completamente familiares, mesmo que não saibamos nada deles.

  Ele segura o prato com uma massa e tem ainda uma garrafa de vinho e taça que precisa administrar no meio do vendaval. Aposto mentalmente com ele de que serei a última a deixar a galeria. As condições dele parecem menos favoráveis que a minha na batalha. Peço outro café e assisto ele comer e beber em meio a insegurança dos ventos. Meu segundo café chega, esqueço o homem por alguns minutos, fecho os olhos e posso sentir o vento purificar minha história.

  O vento apaga as últimas faíscas de fogo ruim dos tempos mais recentes, levanta e me devolve os segredos que precisei esconder debaixo das mesas, aplaca o ardor das feridas que nunca cicatrizaram, manda embora as paixões mais leves, aquelas passíveis de serem descartadas a qualquer hora, espalha a poeira das melhores lembranças e abre espaço para o que vem no próximo redemoinho. De olhos fechados, eu sou grata pelo vendaval que anuncia a chuva, o cheiro dela agora é mais forte do que o do café. Fico leve e me sinto resgatada em meio ao vento, não por nenhuma coisa ou alguém de fora, mas por mim mesma, aliada aos sopros da tarde de sexta. O vento move o que eu não quero mais e me devolve o que eu perdi pelas ruas passadas.

  Engasgo com um pouco de areia que entra pelo meu nariz, o panfleto de um curso de inglês gruda na minha testa,  derrubo a xícara de café, molho a minha calça e me atrapalho com o cabelo que entra nos meus olhos. O guarda-sol da minha mesa suspende um pouco do chão e eu pareço muito leve. Não posso mais resistir, a atendente me chama e diz que vai arrumar uma boa mesa para mim lá dentro, enquanto isso, o homem nem se move. Sua mesa parece pregada ao chão, ele parece aterrado ao piso. Come sua lasanha, toma o vinho, sem se abalar. Ele ganha. Não tenho mais chances ali.

  Rendida, pago a conta. Não fico na galeria, mas recuso o abrigo. Se chover, me molho. Se ventar mais, corro o risco de perder todo o passado na ventania. Antes de seguir o meu caminho ainda olho para o homem, ele leva uma garfada de massa à boca, nem se emociona com a vitória que é dele. O vinho tinto que ele bebe tem muito mais cor que ele, tão preto e branco quanto os quadros do café.

   Esse é um homem cinza que nunca se atiraria de um precipício, mas é um resistente ao vento. Nenhuma estratégia minha seria capaz de vencer um homem desses. Porque me atiro a sucessivos precipícios e só fico ao vento até ele sufocar de ar e poeira meus pulmões. Um ambulante grita ao longe a promoção de guarda-chuvas, num vento desses perderia o investimento. Vou do mesmo jeito que vim, sem segurança alguma, com o risco de ser suspensa pelo ar. Mas na parte de dentro do café eu não fiquei.




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