sexta-feira, 20 de maio de 2016

Dizem que só dói na hora mesmo

  Todos os dias há a possibilidade da surpresa, se admitirmos que a novidade nos alcance sem medo. Se nos colocarmos ao ar livre, dispostos a qualquer intempérie, sem escolha de sol, vento, chuva de granizo ou sereno;  se deixarmos que ela nos atinja em cheio, sem proteção de escudo ou guarda-chuva. Nem tanto com o desconhecido de fora, com o oculto do estrangeiro, com o lado da cidade que nunca passamos ou pelas outras ruas nas quais nem sempre andamos. As surpresas vêm mesmo com os íntimos, com os desconhecidos de quem sabemos os nomes, os tipos sanguíneos, o signos ascendentes. Chegam com pão francês da mesma padaria há quase uma década, vêm no ônibus do bairro que pegamos todos os dias, chegam pelo carteiro João, esse que bate o  interfone e pede uma assinatura para que você receba o que pediu e já nem se lembra. Ganhei um presente. Fui completamente surpreendida pelo antigo íntimo.

  Cheguei mais cedo. Em bem poucos lugares eu chego no horário, mais cedo então, é raridade. Das outras vezes em que eu estive aqui, já fui direto para a sala, mas hoje tive mais tempo na recepção. A moça dos cabelos azuis fica um tempo ao telefone e depois se senta ao meu lado, começa uma conversa e me oferece o meio sanduíche que acabou de pegar em cima do balcão. Pergunta se é a minha primeira vez aqui. Explico que já estive outras vezes como companhia, mas para mim é a primeira sim. Ela me pergunta se eu trouxe alguém, respondo que preferi vir só.  Ela diz que pareço nervosa. Digo que talvez esteja ansiosa. Ela coloca a mão suja de maionese na minha perna e solta um lacônico:
- A dor passa rápido.
Logo eu, que o que menos temo na vida é a dor.

  Conversamos um pouco, ela termina o sanduíche e ignora duas ou três ligações. Logo o homem sai, se apresenta e me pergunta o que vai ser.
- Não sei. Desculpa não ter desmarcado, mas achei que resolveria a tempo.

  Sentamos os três na sala e ele traz algumas pastas. Diz para eu olhar e marcar as páginas de que mais gostar, para usarmos como referência.
- Não precisa ser igual, a gente pega um pedaço de uma e junta com outra. Assim... mas a gente tem que trazer uma harmonia.
Eu respondo: - Ah tá. Harmonizar é bom.

  Depois me aponta um computador e diz que se eu preferir posso digitar uma palavra-chave e eu encontrarei o que quiser; mais de dez mil imagens ele me diz. Fico mais confusa; quanto mais largo o limite das possibilidades mais dúvidas entram pela mesma porta.  Ele me pergunta se eu tenho ideia de tamanho, respondo que não. Ela quer saber se defini se será uma imagem ou palavra, digo que também tenho dúvidas. Não sei se preta ou colorida; preenchida ou vazada. Não sei de nada e mesmo assim, vim buscar meu presente de aniversário. Marco umas vinte páginas, mas queria marcar mais. Ele sugere que eu vá eliminando alguma coisa e eu tento seguir o seu conselho. São pacientes, muito. Especialmente nos primeiros trinta minutos, e depois, estamos todos cansados. Falamos de referências da cultura céltica, oriental, gótica, músicas favoritas, citações. Depois de quase uma hora e nenhuma página mais marcada, ele pergunta:
- Não gostou de nenhuma?
- Gostei de tudo. Mas definitivo é difícil, né?

  Procuro uma tatuagem que conte o que eu sou numa imagem, frase, letra. Pode ser preta ou em cores, em português ou qualquer língua estrangeira, mas no segundo caso, só queria ter a certeza de não marcar o corpo com um erro grotesco. Procuro algo que não me arrependa da escolha, mesmo que um dia não tenha o significado que eu veja hoje. Que eu nunca queira esconder sob a manga de uma blusa ou em um maiô sem graça, que eu nunca tenha que comprar uma maquiagem especial para camuflá-la, nem ter que me submeter a seções de lazer para suavizá-la. Procuro uma marca que não me declare propriedade de ninguém, nem sentimento, nem paixão única; não sei ser exclusivista para afetos. Que me lembre, senão de quem fui ou sou, de quem muito quis ser. Ofereço um pedaço de pele para algo que justifique a dor passageira e que me faça esquecer daquelas que doerão para sempre.

  Procuro um desenho que apague estes outros que eu ando cansada de ver. As marcas que só eu sei e vejo, mas que me estampam completamente. Procuro a tatuagem que me faça esquecer os nomes, as longitudes e latitudes de cada acontecimento que eu não gostaria de ter marcado. Uma tatuagem que mostre ao mundo exatamente quem eu sou, que eu não precise ir me apresentando aos poucos, que descubram num olhar quem eu sempre fui. Procuro uma tatuagem que invente um novo passado para mim e um futuro muito promissor e que não me fale do meu presente.

  Procuro uma marca consciente, que eu olhe para ela e saiba da minha liberdade de escolha, do prazer de uma agulha riscar um traço para sempre meu. Procuro uma tatuagem que sobreponha essa porção de linhas invisíveis para os outros, esse universo de personagens nas minhas costas, as flores que espetam as minhas coxas, os peixes que saem da minha virilha em direção aos joelhos, as asas que marcam os meus pés, as frases com os poemas de Plath nos meus braços e o colar de caveiras coloridas que enfeitam o meu pescoço.

  Procuro uma marca definitiva que seja grande e cheia de detalhes, para que a dor na pele seja duradoura e mais intensa do que as dores menos latentes, mas muito mais demoradas dos desenhos que eu marquei com a vida. Que a agulha espante e distraia essas outras marcas que eu nunca quis, mas às quais eu sempre estive exposta.

  Não acho na pasta, não encontro no banco de imagens do sistema. Já estou há duas horas com a moça do cabelo azul e com o homem que prometeu a marca. Eu não posso levar meu presente de aniversário para casa. Peço desculpas, admito a minha impossibilidade e prometo voltar outro dia, mesmo sabendo que não é para mim esse ritual.

  - Desculpa, mas eu não preciso de mais uma tatuagem.

  As pessoas me surpreendem com frequência, mais que os estranhos, os conhecidos. Mas ninguém me causa mais estranheza do que eu a mim mesma. A pele parece nua, mas já são tantas as tatuagens que fica muito difícil ver onde uma termina e a outra começa. Sou péssima em harmonizar sentidos.



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