sábado, 11 de junho de 2016

É um sopro que nos leva para fora


   Escuto o gato do vizinho no telhado, ainda é escuro, umas seis da manhã e faz muito frio. Mas essa é uma rotina da qual o gato nunca se afasta, nem a névoa branca, nem os envenenamentos aos gatos da rua  recentemente, nem a tela nas janelas do apartamento. O gato sabe o jeito da liberdade, o gato conhece e retoma-a para si todos os dias. Ele obedece ao seu chamado mais ancestral, deixa a casa, abandona o quente e, de repente, tem essa vida felina que é dele. Não sei se o gato é livre porque encontra a saída sempre ou é preso a essa rotina de fuga. Não sei.
 
  Na rua, mais tarde, um casal de idosos, na minha frente, tem muita dificuldade de se locomover. O homem segura nas paredes das casas, nos muros, nos portões e a mulher ao seu lado a todo tempo, mas com quase a mesma limitação de agilidade, parece que a qualquer momento poderá cair. Podem os dois cair. Não levam sacolas, recusam a oferta de ajuda do funcionário da padaria.
- Não há o que fazer, rapaz.
Se resigna a senhora. Dá um meio sorriso, que faz os seus olhos orientais ficarem ainda menores, e puxa o companheiro que já deslizava pela parede.
 Passo por eles, atravesso a rua, mas me viro para continuar observando-os, andam devagar e não consigo esperar que eles cheguem ao final da rua. Meu tempo me chama. Não vivemos sob os mesmos ponteiros. Quase não podem mais andar e sábado à tarde estão na rua. Não sei, mas algo os quer aqui.

  O homem do escritório ao lado, perdeu  mulher e filho há menos de um mês e esta semana já estava de volta ao trabalho. Encontrei-o no elevador, nunca nos falamos, mas atrasada, a porta ia se fechar e eu gritei que alguém a segurasse, era ele. Éramos os dois no elevador e ele olhava bem nos meus olhos, não tinha como fugir, tampouco tive coragem de fitá-lo com a sinceridade e o afeto que ele merecia. Ele tinha profundidade nos olhos que me miravam e eu tinha a superficialidade do medo. O que dizer a esse desconhecido de quem não ignoro a tragédia? Uma formalidade? Não. Não cabe neste elevador, a um homem desses, só formalidade. Falo sobre a perda? Não. Ele talvez nem saiba que eu sei, talvez não queira que ninguém o recorde, mesmo que ele nunca se esqueça. Por que ele volta hoje? Como alguém é tomado por uma força dessas em um tempo tão pequeno? Por que só eu no elevador?

  O homem me olha. E eu agora sei que ele sabe que eu sei. Na infinidade do silêncio de doze andares, me sinto soterrada pela impossibilidade da voz,  eu não digo nada, nem ele. Não olhamos no espelho, nem para a tela do celular ou buscamos um relógio no pulso. Ele me olha e acho que talvez me desafia a ser melhor. É quinta, manhã, não sei ser melhor hoje, estou completamente desamparada de qualquer palavra. A porta do elevador se abre, um suspiro de alívio começa no abdome e chega até a boca. Descemos, ele vira a direita, tomo o corredor da esquerda, mas ele olha para trás e, de novo, meus olhos estão lá. Então, chega de um jeito que eu não saberia como:
- Bom retorno.
Eu disse. 

  Eu vi a perda, a desolação, a incompreensão da curva mal executada, dos cintos desabotoados, a estrada escura, a demora na chegada do atendimento, o desespero do motorista, o telefonema com a notícia. Eu vi. Eu vi a perda total do futuro, o seguro fazendo perguntas, os documentos se acumulando nas mãos dele, o quarto do filho, a camisa de futebol do time que ambos torciam, no varal, o bilhete da mulher na porta da geladeira, era o número de um telefone e "sabão em pó", escrito na caligrafia tão bonita dela. Eu vi o que ele vê e mal consegui passar o dia, e ele? O que faz com que esse homem saia da cama pela manhã? Não sei. Eu que vi os olhos dele, que tive a sua profundidade nos meus, que atravessou a minha precariedade e tirou dela uma frase, não sei o que o sustenta de pé.

  Agora, em casa, olho para os pés de tênis. Vacilo na decisão, não quero ir. Talvez não deva. Amarro cada pé e saio no frio também, como o gato. É fim de tarde, o céu já é escuro, mas na avenida, os carros acendem os faróis coloridos e é a visão mais bonita do sábado. Olho para os meus pés e acho que são eles me levam. Estão descolados de mim, fazem eles próprios o caminho da decisão.

  O gato só sai no frio da manhã, porque a sua experiência de gato é essa, de subir nos telhados, de fugir da morte sucessivas vezes e de escapar do amor do dono o quanto puder. O casal de idosos se resigna com a limitação de cada um, mas não sucumbem às limitadas paredes do apartamento. Saem pelas ruas aos sábados porque são chamados a isto por algo que talvez não reconheçam. O homem do escritório e quem eu encontrei no elevador não chegou até aqui por outra coisa que não essa voz que sopra um mantra de continuação. Não sabe ainda qualquer razão de continuar, mas também não decreta o fim de coisa alguma. Porque acabar é  muito definitivo. Ainda atravessará os mesmos corredores, entorpecido, vazio de entendimento, talvez chore em algum canto num dia desses. Mas vem porque é chamado a isso.

  Escuto também o meu chamado. Amarro o tênis com cuidado, dou duas voltas no laço e ainda faço um nó, puxo a manga da blusa, até cobrir as mãos, há um compromisso vital nisto, mesmo que eu nunca saiba qual é. As luzes dos carros na avenida, os pés com mais decisão do que a dona. É  um sopro que nos leva a não acabarmos, mesmo quando tudo parece apontar para isto. Nascemos e acabamos num sopro, todos os dias.



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