terça-feira, 7 de junho de 2016

É o partido de lado do cabelo que incomoda, sabe? Só.

  Reconheço neles o que um dia foi em mim. Não, espera, reconheço neles o que há em mim. Desses encontros que duram, que não acabam nunca, nem quando há despedida. Dessas relações que atravessam no tempo, confundem papéis, que formam um emaranhado de restos de linha no cesto, difícil dizer qual é o pedaço mais antigo ou qual saiu de onde, nem precisa, são todos do mesmo cesto. Quanto mais os dedos trabalham para desatá-los, mais se prendem, mais os nós se ajustam.

  Ele é um menino típico de classe média: agenda cheia, pares de tênis que variam ao longo dos dias, mora no bairro perto do centro, estuda na escola religiosa mais tradicional da cidade e anda sempre acompanhado de sua tutora. Encontro a dupla diariamente, duas vezes na semana acho que ele vai para a natação e as outras três eu o vejo entrando no conservatório. Sinto que envelheço depois de cada encontro, o tempo passa mais evidente para mim quando esbarro meus ombros nos deles. Eles seguem em direção contrária a minha, levam um pedaço a mais da minha juventude, que só percebo quando chego em casa. Acho que a guardam na mochila dele.

  A mulher em quase nada mudou, só o cabelo que perdeu centímetros ao longo dos anos, mas ele é quem mostra o tempo para mim, conheci-o no carrinho de bebê, enquanto ela empurrava docemente o seu menino pela avenida principal. Depois,  se tornou aquele humano de pernas tortas e direção que precisava de auxílio o tempo todo, agora tem dez, onze anos. É alto, grande e os olhos, esses são os mesmos de sempre; ele cresceu ao redor dos olhos redondos e pretos. Pressinto que se me perder dele, serei capaz de reconhecê-lo por esses mesmos olhos daqui a cinquenta anos, um século.

  Agora, apontam na esquina e trazem a mãe do menino junto deles, ela eu quase não vejo, acho que hoje é dia de reunião no conservatório, porque vi outras mães e pais que quase não vejo. Tenho tempo de vê-los andarem até passarem por mim. Pela primeira vez, percebo o quanto o menino e a tutora se parecem, não fisicamente, porque são bem distintos, mas o caminhar, com as pernas meio relaxadas, o pescoço bem ereto e a boca aberta;  o lado do cabelo partido também é comum entre eles, a risada, quando se contorcem um pouco para os lados, afastam um pouquinho para trás e tampam a boca, escondendo os dentes. Eles riem muito, sempre. Especialmente quando estão longe ainda, porque quando passam por mim parecem brigados, caras fechadas, ele resmunga e ela levanta a sobrancelha, mas se depois olho para eles de costas, de novo, estão próximos e, às vezes, ela passa a mão nos cabelos dele, acho que é quando retornam à boa amizade. Isso. Eles têm ficado cada vez mais parecidos. Nos emaranhados de linha acontece assim também. Passam a se confundir.

  A mãe tem um semblante jovem, suave, receptivo e parece ser iniciada, por eles, ao ordinário da vida. Eles sabem em quantos segundos é possível atravessar a rua, antes do sinal abrir e apressam a terceira integrante; sabem em que altura da avenida há um cão que irá pular no portão e a previnem e, agora,  param na loja de biscoitos  e saem com o mesmo pacote de sempre,  de jujubas coloridas que exala  tutti-frutti quando passam por mim. Ele sempre separa as vermelhas e dá todas para a sua companheira mais frequente. As primeiras vezes em que eu o vi neste ritual de seleção de balas, achava que separava-as para ele mesmo, para colocá-las todas na boca de uma só vez. Eu fazia isso na infância, ainda faço, para intensificar o prazer do sabor preferido. Mas ele tem alguém a quem deseja agradar mais do que o próprio paladar, ele tem sua risada-gêmea. A mãe se surpreende com o gesto e parece se emocionar com a estreiteza dos dois seres tão conectados e pelos quais ela se responsabiliza, ao menos durante o caminho.

  A maternidade experimentada de outra maneira, ela vê seu filho tão colado a quem ela um dia selecionou como funcionária; ele é um pouco herdeiro dela também. Talvez ela  tenha percebido o partido do cabelo, o andar frouxo ou a risada que tampa a boca. Ou talvez tenha achado que ele puxou ao pai e só. Mas sei que, para sempre, ele saberá a quem pertence as balas vermelhas, em qualquer lugar do mundo, mesmo em outras marcas de jujubas, mesmo até que passe a não comprá-las mais, bastará um cheiro de tutti-frutti e a mulher que empurrou o seu carrinho, o puxou pela mão, sorriu e se zangou com ele, virá visitá-lo. Eu ainda gosto de lavar e secar a pia da cozinha e não é só por organização e limpeza.

   Essa  é uma relação que se estenderá para além deles mesmos. Marcados pelos dias que compartilham, pelas jujubas vermelhas que ele dá para ela. Os três passam por mim e, hoje, eu não envelheço, a mãe não permite que a dupla guarde mais um pedaço da minha juventude na mochila dele. Os fios do cesto se entrelaçam cada vez mais, não sabemos onde começa ou termina, mas a gente sabe que nenhuma mão, nem mesmo a mais delicada e hábil é capaz de manter a ordem dos fios por muito tempo. Pertencem ao mesmo cesto, ainda que não se lembrem como começou. Não queria que se despedissem nunca, mas o partido do cabelo dele precisa, seriamente, ser revisto pela mãe, não fica bom para ele não.



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