sábado, 2 de julho de 2016

Amor é passagem sem troco

  - Se esperar ele chega. Se tiver paciência uma hora ele aponta no final da avenida e pronto! Não tem muita hora certa, não. Sabe como é, né? Falam para gente que é tal hora, mas não tem regularidade. Certeza só é de que vem, uma hora vem. Fique tranquila!
   - Tem. Tem sim. Agora tem aplicativo que você vê até onde ele está, a rua certinha, mas também falha, né minha filha? Porque eu mesma só confio no que para a minha frente. Fora isso, eu desconfio mesmo. Diz que mineiro é desconfiado, sou baiana, mas já moro aqui há mais de vinte anos, já deu para pegar mania de mineiro, né?
  - Olha lá, não falei! É o seu. Vai lá, faz sinal senão ele passa direto. Vai com Deus e confia que tudo tem sua hora, igual ônibus mesmo, uma hora passa! O meu está atrás, deu certinho. Tchau!

  Vão embora as duas, porque ele vem. A mais velha sabe que ele nunca falha e aconselha a mais nova a ter paciência e esperar. Não confia em previsões de chegada, nos aplicativos também não, mas já está acostumada a saber que ele sempre vem e essa certeza guardada na sacola de plástico do supermercado é o que faz com que ela olhe para cada ônibus que aponte no começo da avenida.
 
  Agora, chega ele, cinco ou seis minutos depois de mim, dá um puxão no meu cotovelo e pergunta impaciente se o ônibus dele já passou. Respondo que cheguei há pouco e que neste tempo não veio. Ele se irrita, fala alto, diz que o ônibus está atrasado e reclama, mesmo que ele possa  ser favorecido com um possível atraso, já que ele só chegou no ponto agora. O homem agitado, de fala brusca se afasta e repete a pergunta, neste mesmo tom de autoridade contrariada, para cada pessoa que pareça esperar seu ônibus . Finalmente, um homem tem uma resposta que o deixa mais calmo, não passou, porque ele também espera a mesma condução. Ele se aproxima sorridente do homem, tranquilo, com o olhos mais serenos, acho que vai dar-lhe um abraço, mas se abaixa e coloca sua sacola próxima aos pés do homem. Não diz nada, mas compreende-se que ambos, agora, estão ligados por uma mesma espera. A sacola nos pés dele é sinal de confiança e partilha de responsabilidades. Nesta segurança, as relações prosperam, bastará uma dúvida, um lampejo de desconfiança e a sacola não ficará mais nos pés de outro alguém, a recolheremos e magoados, vamos apertá-la contra o peito e jurarmos que  nunca mais nos afastaremos dela.

  Está frio e o homem agitado, embora mais alegre, veste um short jeans e meiões de futebol. Saltita de um lado ao outro do ponto e desperta a atenção geral. Se aproxima de jovens solitários ou em pequenos grupos e olha cada um deles nos olhos, sem pudor, sem razão aparente. Alguns se enrubescem e desviam do olhar, outros desafiam-no, fazem graça, tentam manter algum diálogo, mas ele é quem quer ser o dono da situação, desvencilha dos assuntos e só responde o quer. Depois de alguns minutos fitando o jovem eleito, geralmente os mais tímidos, sem rituais, incisivo, ele faz uma pergunta crucial: - Quer ser meu amigo?

  É terno, é bonito, é a entrega divertida da primeira infância, quando as coisas precisam ser ditas, esclarecidas e anunciadas.
 - Ele é meu melhor amigo.
A gente apresenta.
- Nunca mais vou ser seu amigo.
A gente sentencia.

  O homem é adulto, grisalho até, mas desde a sua abordagem desajeitada, puxando meu cotovelo e reclamando do atraso do ônibus, era evidente a sua particularidade em estar no mundo. A sacola nos pés do homem que ele acabou de conhecer confirma minha percepção, o meião colorido e short jeans no frio de julho também disseram muito sobre quem ele não era. E agora, esse jeito de fazer amigos, porque não há um que negue a ele a solicitação de amizade. Sorrio de cada investida dele,  olho para os lados e todos sorriem também. O clima é outro. A espera é mais leve, é dele a alegria do ponto, é para ele os nossos olhos de admiração pela coragem de se manifestar amorosamente sem medo. Diz coisas como: - Gostei de você, a gente pode ser amigo? - Oi, você parece tão legal, quer ser meu amigo?

  Com alguns não é tão delicado: - Você está meio gorda, mas é bonita e cabe no banco do ônibus.
Ele volta a se aproximar de mim, fico em suspensão por uns segundos, esperando pela declaração que virá. Pergunta se tenho filhos - nada me parece diferente, porque ultimamente tem sido uma pergunta frequente - respondo que não e ele pergunta se quero tê-los. Fico um pouco desconcertada, porque não sei a resposta e antes de sair qualquer grunhido da minha dúvida, ele me interrompe e diz: - Devia ter, já pensou se tiverem os seus olhos? Olho claro, bonito. Quer ser minha amiga? Repondo que sim, ele aperta a minha mão e vai em busca de outras amizades.

  É isso, é ele. Ficamos todos atônitos, submetidos aos improvisos de ternura do homem de short jeans e meião colorido. A cidade nem é grande, mas, às vezes, parece uma dessas metrópoles que assistimos nos filmes do Allen: muita gente, poucos olhares trocados e uma solidão acompanhada de outras várias solidões.

  Mas, então, é a vez dele ir embora. O ônibus aponta na avenida, o homem com quem ele partilhou a responsabilidade pelos bens na sacola, chama-o, deixa-o passar na sua frente, carrega a sacola e o ajuda a passar pela catraca, se sentam e vejo-os partir. Quase sinto saudades do meu recente amigo.

  Nos três dias seguintes à esta terça-feira, o homem apareceu no ponto com a mesma pergunta, a mesma sacola, só os meiões de cor diferente em cada dia - verde, cinza, azul e hoje, vermelha. Abordou outros jovens, me pediu a amizade e não se lembrou que já éramos amigos de muitas vezes. Fez alguns meninos corarem, despertou ternura, resgatou sorrisos do concreto e nos fez, todas as vezes, gostar de gostar. Trouxe a lembrança da simplicidade do afeto, da beleza que é a verdade e a clareza na fala.

   O homem que me pede amizade há uma semana, todos os dias, me faz rir, deposita sua confiança nos pés de  qualquer desconhecido e me faz gostar de amar é o próprio amor. O amor é essa leveza de esquecimento e novidade diária; é fluido, porque o que é feito para durar é a memória. Amor é travessia, não é continuidade. Amor é para quem ama sem medo de acabar, sem sofrimento antecipado de abandono. Amar é esse abuso de olhar sem medo, de perguntar sem metáfora, de seduzir sem artimanha. Amor acaba e começa tudo de novo, várias vezes. O que permanece não é amor é prisão; é nó sem a delicadeza de laço.  No final, ele sempre vem, não é? Ficamos aqui, porque temos certeza que uma hora ele há de passar, mesmo que não saibamos a que altura ele anda, se perto ou longe, uma hora chega e nos leva do ponto.

  A condução vai embora, eu fico no ponto e vejo os corações partidos dos amigos que ele faz e abandona. Ele pede amizade, ganha para além dela e vai embora. Eu o amo e ele nunca se lembra do que já somos ou talvez se lembre, mas prefira fazer os laços diariamente, para que não se desgastem, não se desfaçam por falta de cuidado ou atenção. Ele se apresenta a cada dia e depois vai embora. Entra no ônibus atravessa a catraca e sempre se esquece do troco, porque ele só quer pagar a passagem e sentar na janela.  Aprendi a vê-lo de costas e não lamentar pela sua memória viajante. Melhor que ele me esqueça e queira me conhecer outros dias. Essa fluidez eu ainda aprendo.



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