A noite começava, mas estava bem escuro, céu de inverno, que esvazia as ruas e enche de estrelas a escuridão. Eu fazia o caminho de sempre, um pouco mais apressada, porque é assim que eu ando ultimamente, sempre desconfiando de que a vida onde eu não estou é aquela que corre e que o lugar que eu não alcanço é onde tudo acontece. Corro para não perder o que eu nem sei se existe e acabo sem ver o que abandono na pressa. Diminuo os passos, tento achar na bolsa um elástico para cabelo, alguma coisa chegará preservada até o lugar para o qual tenho urgência, queria que fosse o cabelo, já que o resto todo parece descompensado: respiração, pernas, batidas do coração, chaves perdidas na bolsa. Mas, então, a minha vida que nunca escolhe hora, lugar ou dia, mas que me define como sempre pronta para as surpresas, me apresenta para essa desconhecida.
A mulher parece jovem, especulo pela voz, porque não vejo o seu rosto, chora baixo, suplica que o rapaz, muito nervoso, não a deixe. Escuto de maneira mais clara as negativas dele do que os pedidos desesperados dela, porque ele grita com toda a potência de um transtornado e ela sufoca as palavras no capacete que não tira. Paro. Não passo. Vejo-a tentando segurá-lo e ele a empurrando com uma violência completamente desproporcional; ela é pequena, frágil e chora muito. Ele continua gritando e eu não consigo me afastar deles. Discutem como se estivessem em um espaço privado, não veem que eu testemunho, que agora há curiosos na janela e que os carros continuam circulando na rua, apesar deles estarem cada vez mais próximos do asfalto. Eles não sabem dos outros, ninguém se manifesta, mas eu não posso ir embora, a menina no capacete parece me chamar sem saber.
Ela que não tira o capacete, não sei se por vergonha ou proteção. Chora dentro dele, faz súplicas sob a sua guarita compacta, tenta dissuadir o rapaz da tentativa de abandoná-la. Mas onde ir com esse homem que a rejeita? Que usa as mãos, os braços e todo o corpo para negá-la. Por que não ir em um caminho contrário ao dele? Por que continuar nesse choro baixo, doído e sem resultado? Não entendo, ela não explica, possivelmente nem ela sabe e eu tampouco saberei um dia.
Ele parece mais agressivo, empurra-a com mais força e vai em direção a uma moto, alguém de uma das casas grita, ameaça chamar a polícia, mas ele parece não ouvir. Começo a me aproximar de ambos, mas passo a pensar que ele talvez esteja armado. Tenho medo e por isso não me aproximo ainda mais, não intervenho, mas me sinto atrelada à responsabilidade de olhar pela moça do capacete. Uma voz, de longe, grita para que eu saia, mas meus pés estão fincados para sempre ao chão ou, pelo menos, até a moça estar protegida. Sou a mãe leoa dela agora, sou a irmã mais velha que não tem causa definida, mas um mesmo lado em qualquer batalha, sou ela.
O rapaz sobe na moto, a moça se coloca na frente dele, sem saída, ele desliga a moto e desce, ela segura com mais força o veículo, ele continua gritando e a empurra, ela desequilibra e cai no asfalto, com a moto sobre o seu corpo pequeno. Ele começa a dar chutes na moto e nela, o choro dela ainda é baixo. Os moradores da rua gritam em coro e eu não consigo falar nada, mas caminho em direção a mão dela, que suspensa no ar, pede o mesmo socorro de alguém que está a uma braçada de se afogar. O rapaz se afasta, a moça do capacete e eu lutamos para resgatá-la do fundo. Meus olhos, pela primeira vez, encontram os dela e eu quero abraçá-la e dizer que tudo ficará bem, como gostaria que fizessem comigo. Ela se levanta, tem uma das pernas sangrando, a calça jeans rasgada, mas o capacete intacto, no lugar. Mesmo com o susto, o ferimento, os empurrões e os gritos, ela levanta-se ágil, se apoia em mim e olha para o rapaz que já está em cima da moto novamente. Nos dedos finos dela, a friagem da noite de inverno e nas unhas, o mesmo esmalte vermelho que eu uso; igual. Vinte dedos rubros se encontram às seis e quarenta e cinco da terça-feira, a moça do capacete sofre sucessivas violências e o meu grito, sem proteção, não se solta da garganta. Não tenho uma só palavra agora.
Essa mulher de capacete e com sangue escorrendo pela perna, sou eu. Nós duas sabemos da dor.
Ela se escora mais um pouco em mim, dá um impulso surpreendente, se segura na cintura do agressor e senta na sua garupa. Ela se agarra ao seu homem, solta as minhas mãos e me dá seus olhos de adeus. Ele acelera, eu quase caio, mas ainda vejo a cor da sua unha, os olhos atrás do capacete e o sangue jorrando, desaparecerem da rua e da minha vida, que há alguns segundos era um pouco dela também.
Era eu a caída no chão, perdida de mim. Quando eu abaixei para ajudá-la, eu tentava me salvar. Quando eu pulei no mar para resgatá-la de um afogamento provável, eu buscava o ar que na minha vida parece cada vez mais distante. O esmalte vermelho dela, igual ao meu, é só mais sinal de que eu também não estou na direção da moto. Traída, perdida, entregue a uma vida que eu desconhecia, mas que agora fará parte de mim para sempre, eu desejei que ela descesse da moto na próxima rua, que a sua fuga não fosse compartilhada com o homem que a magoava.
Sou eu a moça da moto, que nunca tira o capacete, porque está sempre em iminência de fuga. Sou eu a mulher caída no asfalto, que não ousa gritar, mas que pede socorro na calma. Sou eu a moça de unha vermelha que não aceita as negativas nos gritos, que não confia em desconhecidos e que confunde o privado e o público, porque para ser privado, basta uma capa, uma sombrinha, um escudo. Sou eu, aquela que a vida dá sucessivas chances de libertação, mas que não desamarra o capacete, que continua numa viagem que há muito acabou.
Acho, finalmente, o elástico de cabelo na bolsa. Se eu tivesse ficado em casa, se eu tivesse ignorado os gritos. Se eu não fosse eu. Mas sou. Há muito que sou e continuarei sendo. Queria que a moça não tivesse subido na moto; queria.
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