quarta-feira, 29 de junho de 2016

Esse capacete também é meu

   Se eu não tivesse atrasado ou se demorasse mais vinte minutos a sair de casa. Se eu passasse pela outra rua ou não saísse de casa neste dia. Se eu não escutasse a confusão ou se ouvisse e ignorasse, se eu não fosse eu. Mas era, mas fui. Eu era eu e ela era era. No universo das suposições não nos encontraríamos nunca ou, ao menos, não nos aperceberíamos uma da outra. Talvez esbarrássemos na rua, uma de nós perguntaria as horas ou um endereço qualquer e não teria a minha vida atravessada pela dela. Mas fomos exatas no tempo, ninguém deixou uma esperando pela outra. Cumprimos o que não combinamos. Estivemos na mesma rua a um mesmo horário e dia. Difícil esquecer os olhos de um desconhecido cruzando com o seus e esses  forasteiros dizerem mais, numa única mirada, sobre você do que qualquer terapia, iluminação mística, ou outros desses tantos botes, onde depositamos nossas esperanças de entendimento.

  A noite começava, mas estava bem escuro,  céu de inverno, que esvazia as ruas e enche de estrelas a escuridão. Eu fazia o caminho de sempre, um pouco mais apressada, porque é assim que eu ando ultimamente, sempre desconfiando de que a vida onde eu não estou é aquela que corre e que o lugar que eu não alcanço é onde tudo acontece. Corro para não perder o que eu nem sei se existe e acabo sem ver o que abandono na pressa. Diminuo os passos, tento achar na bolsa um elástico para cabelo, alguma coisa chegará preservada até o lugar para o qual tenho urgência, queria que fosse o cabelo, já que o resto todo parece descompensado: respiração, pernas, batidas do coração, chaves perdidas na bolsa. Mas, então, a minha vida que nunca escolhe hora, lugar ou dia, mas que me define como sempre pronta para as surpresas, me apresenta para essa desconhecida.

  A mulher parece jovem, especulo pela voz, porque não vejo o seu rosto, chora baixo, suplica que o rapaz, muito nervoso, não a deixe. Escuto de maneira mais clara as negativas dele do que os pedidos desesperados dela, porque ele grita com toda a potência de um transtornado e ela sufoca as palavras no capacete que não tira. Paro. Não passo. Vejo-a tentando segurá-lo e ele a empurrando com uma violência completamente desproporcional; ela é pequena, frágil e chora muito. Ele continua gritando e eu não consigo me afastar deles. Discutem como se estivessem em um espaço privado, não veem que eu testemunho, que agora há curiosos na janela e que os carros continuam circulando na rua, apesar deles estarem cada vez mais próximos do asfalto. Eles não sabem dos outros, ninguém se manifesta, mas eu não posso ir embora, a menina no capacete parece me chamar sem saber.

  Ela que não tira o capacete,  não sei se por vergonha ou proteção. Chora dentro dele, faz súplicas sob a sua guarita compacta, tenta dissuadir o rapaz da tentativa de abandoná-la. Mas onde ir com esse homem que a rejeita? Que usa as mãos, os braços e todo o corpo para negá-la. Por que não ir em um caminho contrário ao dele? Por que continuar nesse choro baixo, doído e sem resultado? Não entendo, ela não explica, possivelmente nem ela sabe e eu tampouco saberei um dia.

  Ele parece mais agressivo, empurra-a com mais força e vai em direção a uma moto, alguém de uma das casas grita, ameaça chamar a polícia, mas ele parece não ouvir. Começo a me aproximar de ambos, mas passo a pensar que ele talvez esteja armado. Tenho medo e por isso não me aproximo ainda mais, não intervenho, mas me sinto atrelada à responsabilidade de olhar pela moça do capacete. Uma voz, de longe, grita para que eu saia, mas meus pés estão fincados para sempre ao chão ou, pelo menos, até a moça estar protegida. Sou a mãe leoa dela agora, sou a irmã mais velha que não tem causa definida, mas um mesmo lado em qualquer batalha, sou ela.

  O rapaz sobe na moto, a moça se coloca na frente dele, sem saída, ele desliga a moto e desce, ela segura com mais força o veículo, ele continua gritando e a empurra, ela desequilibra e cai no asfalto, com a moto sobre o seu corpo pequeno. Ele começa a dar chutes na moto e nela, o choro dela ainda é baixo. Os moradores da rua gritam em coro e eu não consigo falar nada, mas caminho em direção a mão dela, que suspensa no ar, pede o mesmo socorro de alguém que está a uma braçada de se afogar. O rapaz se afasta, a moça do capacete e eu lutamos para resgatá-la do fundo. Meus olhos, pela primeira vez, encontram os dela e eu quero abraçá-la e dizer que tudo ficará bem, como gostaria que fizessem comigo. Ela se levanta, tem uma das pernas sangrando, a calça jeans rasgada, mas o capacete intacto, no lugar. Mesmo com o susto, o ferimento, os empurrões e os gritos, ela levanta-se ágil, se apoia em mim e olha para o rapaz que já está em cima da moto novamente. Nos dedos finos dela, a friagem da noite de inverno e nas unhas, o mesmo esmalte vermelho que eu uso; igual. Vinte dedos rubros se encontram às seis e quarenta e cinco da terça-feira, a moça do capacete sofre sucessivas violências e o meu grito, sem proteção, não se solta da garganta. Não tenho uma só palavra agora.

  Essa mulher de capacete e com sangue escorrendo pela perna, sou eu. Nós duas sabemos da dor.

  Ela se escora mais um pouco em mim, dá um impulso surpreendente, se segura na cintura do agressor e senta na sua garupa. Ela se agarra ao seu homem, solta as minhas mãos e me dá seus olhos de adeus. Ele acelera, eu quase caio, mas ainda vejo a cor da sua unha, os olhos atrás do capacete e o sangue jorrando, desaparecerem da rua e da minha vida, que há alguns segundos era um pouco dela também.

 Era eu a caída no chão, perdida de mim. Quando eu abaixei para ajudá-la, eu tentava me salvar. Quando eu pulei no mar para resgatá-la de um afogamento provável, eu buscava o ar que na minha vida parece cada vez mais distante. O esmalte vermelho dela, igual ao meu, é só mais sinal de que eu também não estou na direção da moto. Traída, perdida, entregue a uma vida que eu desconhecia, mas que agora fará parte de mim para sempre, eu desejei que ela descesse da moto na próxima rua, que a sua fuga não fosse compartilhada com o homem que a magoava.

  Sou eu a moça da moto, que nunca tira o capacete, porque está sempre  em iminência de fuga. Sou eu a mulher caída no asfalto, que não ousa gritar, mas que pede socorro na calma. Sou eu a moça de unha vermelha que não aceita as negativas nos gritos, que não confia em desconhecidos e que confunde o privado e o público, porque para ser privado, basta uma capa, uma sombrinha, um escudo. Sou eu, aquela que a vida dá sucessivas chances de libertação, mas que não desamarra o capacete, que continua numa viagem que há muito acabou.

  Acho, finalmente, o elástico de cabelo na bolsa. Se eu tivesse ficado em casa, se eu tivesse ignorado os gritos. Se eu não fosse eu. Mas sou. Há muito que sou e continuarei sendo. Queria que a moça não tivesse subido na moto; queria.




 


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