sábado, 9 de julho de 2016

Neste mundo em que não precisamos ficar só (Ou onde está o interruptor?)

  A sala está cheia, as pessoas passam pelas estantes e se abandonam ao desejo de consumo. São abordadas e param nas mesas, ouvindo o discurso pronto dos vendedores. Como é fácil seduzir quem não sabe o que busca! E, a um mesmo tempo, como é difícil oferecer autonomia e liberdade a quem se acostumou a ser convencido.  Não me levanto, não tenho um produto a oferecer, mas não me sinto deslocada, fico submersa na multidão e nos olhos que, às vezes, me fazem levantar e esboçar um sorriso. Isto é tudo. Quero a liberdade.Olho para porta, esperando uma entrada que legitime a minha busca, eu não preciso ser convencida, porque eu procuro sem discurso.

  Então, três mulheres entram na sala, não as conheço, mas já não consigo mais buscar nada que não sejam elas. Estão em outro ritmo, andam com mais maciez e bem menos pressa. São silenciosas, enquanto a feira, a está hora, parece estourar em tumulto, são calma, vastidão de tempo e delicadeza, abrem caminho sem vozes, nem toques, ganham espaço com a fluidez de um rio sem força, são um fluxo pequeno, mas permanente. São três mulheres que não se perdem entre si, que se auxiliam na caminhada e, depois, percebo que auxiliam uma delas de pés mais vacilantes. Outra capitaneia o bando, vai a frente, enquanto as outras duas a seguem de braços dados. A pioneira anda pela sala com o mesmo cuidado do restante do trio, mas com mais certeza, com uma procura mais acertada: olha para as estantes, mesas e pessoas, como quem descobrisse um mundo ou sentidos de mundo, não é consumo, nem busca por discursos. Não sei o que ela quer, mas passo a querer o mesmo.

  A sala começa a ficar mais cheia, o movimento muito apressado, a corrida das crianças, as sacolas batendo nas pernas de quem caminha ao lado, as vozes no microfone e as palavras que ninguém entende, a passagem de um carrinho com lanches e água, a abordagem dos vendedores simpáticos, o sorriso conservado em potes de marketing e propaganda de estética duvidosa, nada é capaz de interromper o fluxo contínuo e elegante do trio.

  A líder para em frente a uma das mesas e segura um dos itens de consumo, as outras duas se aproximam e ela coloca o objeto na mão de uma delas, as mãos descobrem cada curva, cada textura, sobem pelos relevos, descobrem asperezas e maciez nas estampas, nos desenhos. As mãos brancas e finas são os olhos da mulher que eu vi amparada. Depois a sua capitã coloca as mãos sensíveis e alvas sobre as dela e  começa a coreografia da linguagem de libras. Não conheço muito desta comunicação, mas o contexto indica que ela traduz em gesto o que a mulher acabou de ver com as mãos. Explica o que é, os desenhos, a função, os materiais. A mulher de andar mais vacilante é cega e surda, mas não perde a feira, não está isolada de um mundo. Há alguém  que está disposta a levar até ela o que ela, sozinha, talvez nunca conhecesse.

  Em cada estante, a cada mesa, a cada dois ou três passos, o gesto se repete, com a paciência e a plasticidade de um dançarino de butô. É absurdo e lindo o tempo que essas três mulheres são capazes de congelar. Quando chamam a atenção do resto do público, ao redor,  que tenta entender a estranha comunicação entre as duas mulheres, a minha camisa já está molhada de lágrimas. Era essa a minha busca. Eu só olhei para porta para este encontro. Bonita e estranha a conexão que nos transporta para o íntimo de outro alguém. Eu estava entre as mulheres, eu passava a ver um outro mundo, que não sei se mais alguém podia ver. Elas me tiravam da escuridão que nem eu sabia que vivia. Ela lendo as mãos dela. Ela absorvendo o mundo através do amor de outro alguém. Elas me levando para um corredor de esperança e desejo de outra linguagem.

  Reconheço a tradutora-capitã, é uma educadora, eu sei, mas agora o caso era afetivo e familiar, porque as mulheres são muito parecidas, talvez sejam irmãs ou talvez não. Não faz diferença alguma, agora, qualquer laço biológico. São íntimas de um grau que eu não alcanço ainda. A terceira mulher ampara o andar mais precário daquela que já viu muito nesta sala e as três saem para explorar outros cantos.

  Quantas pessoas já saíram do confortável em si para percorrer contigo a sua cegueira? Quantas ouviram do mundo e comunicaram para você, o que você nunca escutaria sozinha?  Este é o movimento essencial da vida: ir com outro ao encontro de algo que nos explique, mesmo no escuro, porque alguém sempre tem a visão de um feixe de luz que nos falta. Sentada na cadeira, atrás de uma mesa, pela qual ninguém nunca se interessa, ninguém me vê, mas eu não sou cega do mundo. Talvez eu devesse conduzir então.

  Das três, a que mais entende, escuta e enxerga é aquela a quem amparam e se esforçam para explicar-lhe  as coisas do universo do qual ela não está afastada; é ela quem conduz as outras duas pela escuridão, onde os olhos param na capa de um livro e os ouvidos não entendem as palavras no microfone ruim. Só ela é quem sabe o lugar do interruptor, ela  leva as outras duas ao encontro dele, me faz levantar da cadeira e enxergar que neste mundo não precisamos ficar só.

  Continuo olhando para a porta, mas agora é mais por hábito do que qualquer outra coisa, meu encontro eu já tive, alguém me apontou uma lanterna e eu vi o que sempre esteve a minha frente, mas nunca havia, de fato, enxergado. Eu cega e surda sou conduzida por um trio que não vê limites para uma condução amorosa, por isso, a camisa molhada de choro. Eu vi, eu encontrei o interruptor e nunca o fiz completamente sozinha, mesmo quando eu achava que era.



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