terça-feira, 12 de julho de 2016

Partido assim é que ele bate.

   Não é passageiro, é, na verdade, a maior das constâncias. Os motivos variam, mas a condição é sempre esta: a de estar partido. Dividido para sempre. A inteireza, neste caso, é um mito, é um sonho muito bom, um projeto que se pensa realizar na maturidade. Mas não se realiza, não chega nunca as nossas mãos. Envelhecemos, mas parece que nunca chegamos a sermos mesmo maduros, como pretendíamos. Ainda assim, andamos nesta busca, perseguimos o espectro de sonho, como se verdade fosse, porque nos faz andar, nos impulsiona a seguir e quase chega a apaziguar a dor, a estancar o sangue. O desejo do inteiro é o nosso torniquete na perna, depois de já termos sido picados pela serpente. Curar não cura, não retira o veneno, mas adia por um tempo que ele se espalhe pelo resto do corpo. O arranjo na perna prolonga a nossa possibilidade de vida.

   "Você não fica de coração partido?" pergunta a moça para outra moça, que voltou às aulas depois de dois meses do parto, deixando a filha em casa aos cuidados de outro alguém que não sei, porque não escuto o restante da conversa. Ela diz que fica e explica que daqui a pouco se forma, por isso a volta no final do semestre, não quer perdê-lo. E continua a dar razões para o afastamento de algumas horas da filha que está conhecendo, mas, à medida que fala, ela mesma parece ir se fortalecendo nas justificativas. Porque a gente, tantas vezes, sabe que faz a coisa certa, mas não se convence de querer mesmo estar ali. Tem o coração partido sim; e chega a embaçar as lentes dos seus óculos de grau, a mãe recente. Não ofereço abraço, porque mal a conheço, mas dou um suspiro bem fundo e entendida solto: "É assim mesmo, todas passamos por isso". Como se entendesse de maternidade, como se também um dia tivesse me afastado de uma filha muito pequena, para cumprir outra responsabilidade. Não é o caso, mas ela me olha, retira os óculos, limpa as lentes, solta um suspiro mais longo que o meu e concorda num conformado: "É...".

  Mas o coração partido não é só dela, a moça que fez a pergunta e se furtou de qualquer consolo bobo, deixando para mim essa carga, pela qual acabo sempre me responsabilizando, tem uma fenda no meio do peito, só não nos conta. Eu tenho. As outras três moças da esquerda também, as quatro da direita não falam para nós mas têm,  assim como os dois homens feios da primeira fileira, a professora, a moça do vídeo, ninguém anda de coração completo, porque faz escolhas, abandona causas, pessoas, lugares, muitos sonhos em favor de outros.

  E, mais, lemos a violência nos jornais e a vemos na esquina, somos tratados com a indelicadeza da pressa, ouvimos buzinas, somos espectadores das brigas de trânsito, quando não estamos nelas, deixamos o cão ser atropelado, porque somos lentos demais para salvá-lo, abrimos a porta ao ladrão que toca o interfone, porque parece bem vestido e, de repente, ele assalta a nossa confiança na humanidade inteira. Somos magoados por quem só oferecemos ternura, tratamos mal a quem nos quer muito bem e nem desconfiamos, depois é tarde demais. Esperamos o final de semana e ele nunca dura o tempo que gostaríamos; é como o bolo que demora para assar se estamos em frente a ele na cozinha, mas se resolvemos esperar os cinco minutos deitados na cama, ele queima. O tempo não é objeto mesmo dos ponteiros.

  E não dançamos à luz do dia, porque vão reparar que somos estranhos e não cantamos a música que vem a nossa cabeça, porque descobrirão a nossa idade. E não encontramos a comida boa da nossa infância, por isso comemos mais um dia a lasanha congelada, desistimos do livro, porque já temos trinta outros nunca lidos na estante de casa, assistimos a um golpe sem reação, estamos inertes, desolados e de coração  em pequenos cacos, mas no outro dia chegamos pontuais ao trabalho. Sabe?
  Sem gritar, sem nem chorarmos inconsoláveis no ônibus, sem ninguém notar. Andamos partidos de costume, de acreditar que um dia seremos inteiros e o dia não parece vir na próxima massa de ar polar. Partidos, o tempo todo, assistindo a previsão do tempo e pensando nas férias de janeiro. Acostumados com o rombo no peito, sem nem pensarmos nele, só quando o vazio dói de madrugada e a gente lembra da ausência amparada pelo torniquete.

  Ela assiste a aula, olha para a professora e anota os conteúdos, enquanto a filha é amada e vista por outros olhos. Recebe o calor que não é dela, as orações que a sua voz não entoa. A filhinha vê amor noutros olhos, se alimenta do leite dela, mas não no aconchego do seu peito. Ela chega a invejar quem a segura nos braços a esta hora. Queria ter ela para sempre no seu colo, sem pressa, sem formatura. Ela e a filha, só. Mas ela vem, porque precisa escolher, porque a voz da filha ainda não suplica que a mãe não vá. Ela vem porque faz escolhas a todo o tempo, num dia escolheu ter um filho sozinha, antes do final do curso, sem emprego certo. Agora escolhe, sozinha, alimentar a filha e o futuro. E ela chora um pouco depois da pergunta, mas disfarça.

  Escolha que parece certa, mas não temos vontade de fazê-la. Como quando nós temos que dizer adeus a alguém. Mesmo que a vontade de amor queira ficar, nós sabemos que o amor mesmo deve abrir para o outro e para si às novidades de amor, porque já passamos um para o outro. A decisão também rompe com artérias do coração, mas já sabemos ser  inevitável a rachadura.

 Não é pela filha pequenina em casa. Não é só por ela que os óculos embaçam. É por tudo mais que não tem remédio, só um torniquete improvisado para que o mal não se espalhe. Partidos, todos andamos. Porque  fragmentado assim é que se vive, coração dividido encontra o jeito de bater. Mas então, um menino português abraça um torcedor da derrotada seleção da França e o coração não se cola, mas o suspiro fundo aparece de novo e vamos a vida. Partida. Que é o jeito dela.



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