segunda-feira, 18 de julho de 2016

O lugar que não estava lá

  Subir as escadas, reconhecer portas, descerrar cada uma delas atrás de algo que esteja coberto por uma membrana transparente, que permita a visão, mas garanta sua inviolabilidade. Subir escadas, enfrentar labirintos e reconhecer algum nome, buscar em cada rosto alguém a quem reconheça, que compartilhe  de uma lembrança pequena, nada demais. Que aponte o lugar ao qual se busca. O lugar onde ela esteja muito feliz, embora perdida; cheia de certezas, mesmo que todas se desmoronem logo. Superar cada degrau, buscando um encontro, que seja terno, emocionante, mas que termine quando quiser ir embora. Evitar o que doa e tomar o líquido da alegria até a última gota, depois partir sem adeuses longos. Uma procura para sentir um cheiro que nenhum outro perfume semelhante pode substituir, procura alguma sensação que possa se repetir, como numa simulação, uma realidade virtual, que experimente e vá embora logo que acabar. 

  Subir as escadas e encontrar as fotos projetadas no quadro branco. Mudam a cada vinte segundos: sou eu, não sou eu; sou eu com o cabelo curto; sou eu abraçada a alguém de quem não  lembro o nome. Quem é aquela do meu lado? Que lugar é esse mesmo? Ali era uma festa ? Que ano foi mesmo? Eu tinha uma blusa rosa?
  Estranho se reconhecer e, num mesmo tempo, não saber quem era. Está aqui nesta sala, a busca? As palavras no microfone até soam iguais, mas vêm noutras vozes.

 Chegar meia hora mais cedo e nove anos depois. Tentar encontrar,  nos sinais, alguma sincronicidade, algo que se pareça com o ontem, que diga que intocado, o tempo permanece. Que uma revisita será sempre possível, que os cães sempre nos reconhecerão, que os lírios ainda exalem o mesmo perfume a qualquer tempo.
  Subir escadas, atravessar portas e expectativas. Do outro lado, tentar encontrar o cristalizado, algo que eu sei como termina que, na verdade, não acaba, mas também não muda. Que não tem correção, perdão, nem pedido de desculpas tem, mas cujo encontro é sempre muito acalentado. Dizer a ela que sou eu, esperar que ela não se decepcione com o reflexo nem se arrependa da sua escolha. Encontrar numa peça, num objeto esquecido, as marcas das mãos que já parecem outras.

  Avançar degraus e buscar o lugar onde o passado estará precioso, mesmo que empoeirado; encontrá-lo etiquetado, com referências num texto poético, que explique ao futuro que as raízes brotaram ali. Visitar um acervo, parar em frente a cada peça e se emocionar, sentir que venceu, que ao menos foi capaz de deixar algum legado, de ser memória de outro alguém. Subir escadas a procura de um lugar que guarde o passado. Subir, subir, perder o fôlego e não reconhecer-se em nada. Sentir-se decepcionada, pessoa sem história, só fotos, numa parede branca, que não explicam quase nada. Os cheiros não vêm, as vozes não são reconhecíveis, as histórias mais importantes continuam individuais e impossíveis de partilha. O cão avança, não reconhece o nosso cheiro. Os lírios foram arrancados, substituídos por flores com outro aroma.

  Sentar no derradeiro degrau, olhar para baixo e reconhecer os mesmos pés, não usar a camisa rosa, nem os cabelos curtos e ter unhas de outra cor, mas os pés serem exatamente os mesmos buscadores de sempre. Apressados, firmes e certos num caminho provisório - para sempre - que se constrói muito lentamente.  Fechar os olhos e, finalmente, escutar as vozes chegando aos poucos, os lírios abertos, os cães mansos. Abraçar alguém e saber seu nome.

  Porque o lugar onde a gente guarda o passado não tem paredes pintadas, nem ordem cronológica de imagens e fatos. Não há cortinas, membranas ou vidros que façam das lembranças, intocáveis. O passado não está cristalizado em lugar nenhum. Nem nas cadeiras, nos carpetes, nos quadros, nas comidas, nos cantos nem nas vozes - porque elas também mudam sempre. Os slides com as fotos continuam a passar: sou eu, sou eu, sou eu. Em tudo aquilo em que eu, também, não me reconheço, sou eu. Colados numa existência inseparável: o que fui e sempre serei. Não há vencedores, nem consolo para quem esteve perdido. Era eu em cada foto, em cada degrau terminado. Eu buscava um lugar, mas ele não estava lá. Foi só olhar para os pés e eu entendi o caminho, esse que não termina ao final dos degraus.

  Agora, em casa, retoco as raízes brancas do cabelo da mãe. Eu buscava o passado num prédio, que é mais novo do que a minha história, ela tenta enganar o tempo, escurecendo os fios que os anos descoloriram. Mãe, sou eu no branco dos seus fios. Mãe, era eu em cada foto. Carregamos, todas nós, um passado que não precisa de remissão, nem véu que o proteja. A memória que não cabe num lugar só, segue conosco a cada passo. Mãe, subimos tantas escadas que, às vezes, eu me canso. Mas, de repente, os pés se agitam e eu sei que ainda vou andar muito. Deixo uma mecha de cabelo branco sem tinta, de propósito, para que a minha mãe se lembre, como eu, de que o passado sempre irá conosco.



Nenhum comentário: