terça-feira, 9 de agosto de 2016

Com os chifres do touro esmagando as costelas

   Há renúncias de todos os tipos, algumas parecem durar menos, acabam no instante mesmo da escolha, o fato consumado só volta a perturbar numa lembrança em dia de chuva e olhar perdido na janela, com a única dúvida do que teria sido. Já outras, parecem durar infinitamente, nunca acabam, são promessas a serem feitas e cumpridas  diariamente. E essas, as mais difíceis, são numa mesma proporção as mais importantes. A escolha repetida não vai suavizando com o tempo, os traços parecem mais e mais dramáticos a cada repetição. As dúvidas não se esclarecem ou ficam menos evidentes, pelo contrário, elas saltam, só se fortalecem e nos encaram com os olhos vermelhos de provocação. É uma coragem testada sem descanso. É um abandono feito em papel gigante, com milhares de dobraduras; não sabemos quando acaba, se acaba.

  Ligo a TV e escolho o canal em um programa começado; já é hábito do cansaço, chegar em casa e ver algumas imagens, ouvir umas frases e não me fixar em nenhum contexto geral, gosto desses recortes, me deixo levar por alguns deles, presumo começos que perdi e invento finais, pelos quais não consigo esperar. Parece um documentário, um homem olha para câmera, enquanto sua imagem atual é alternada com fotos antigas em preto e branco, as fotos são lindas, o homem alto de cabelos pretos e postura irretocável é este agora, sentado numa poltrona marrom, guardado num suéter bege e de aparência frágil. Da profissão antiga as fotos, os depoimentos e um olhar de melancolia para o que não é mais ele, embora as lembranças teimem em cercá-lo.

  Foi toureiro, profissão que a família abastada e severa se recusava a aceitar para o filho caçula. Nem gostavam de touradas, foi levado pela primeira vez a um evento desses por um empregado da família, ele tinha cinco anos e jamais pode se esquecer do impacto que esta primeira visão lhe causou. Olhando para o fundo da tela, provavelmente para seu entrevistador, ele se derrama em emoção, quando fala que aos cinco anos definiu sua vida inteira. Não podia viver outra existência que não fosse esta do burburinho da plateia, do suspense, da agonia do encontro do animal e do homem e, finalmente, dos aplausos.
- O maior amor da minha vida.
Ele diz.
  Filho de um médico francês e de uma professora espanhola, ele conta que rompeu com a família para realizar o sonho da arena. No começo, treinava com toureiros e animais de terceira e segunda categoria, mas insistia muito com o instrutor mais famoso da Espanha, sabia que só ele poderia levá-lo até o seu sonho. Falou dos incansáveis treinos, dos acidentes, da força descomunal dos touros e da coragem que a adrenalina alimentava.
- Eu era um deus, por alguns poucos segundos. Eu brilhava mais que o sol, mesmo que as nuvens não demorassem para me encobrir.
  Falava o homem, enquanto as fotografias de poses majestosas e olhar desafiador, eram projetadas na tela.

  Era paixão e eu não conseguia desligar a TV, eu não teria um final para esta vida, não melhor que o dele próprio. Enquanto ele contava com a riqueza dos sentimentos de um nostálgico uma vida sonhada e realizada, eu me comovia e pensava na minha própria. Onde eu estava aos cinco? A vida sonhada teve realização? Na idade dele, o que eu contaria num documentário?

  Mas então, mostram uma única foto para homem, a pausa dramática e a trilha dão outro tom para as lembranças dele, o filme colorido passa a ter um tom mais seco, esmaecido. O homem tem um nó na garganta, mas não se recusa à fala. Conta sobre a vez que, segundo ele, por um pequeno erro de cálculo não conseguiu acertar o touro, perdeu sua lança e foi atingido pelos chifres do seu oponente. Então, ele aponta para a barriga e diz:
- Cravou aqui. Bem aqui e me levou pela arena, me venceu sem trégua.
  O homem ficou muito ferido, foi levado para o hospital quase sem vida e foi salvo pelas mãos do irmão mais velho, médico como o pai deles, com quem não falava há anos. A recuperação foi demorada, a reaproximação com a família foi sua única sorte. Ficou com sequelas graves do acidente, ainda tem, e mesmo sob as súplicas da família ainda tentou voltar às arenas, mas seu desempenho, segundo ele era: miserable.
- Ou eu sobrevivia e matava só uma parte de mim. Ou entrava na arena inteiro e não sobreviveria mais que alguns segundos. Eu não era mais capaz de ser um bom toureiro, embora minha técnica à está altura fosse a melhor da Espanha inteira. Eu pensava bem, mas meu corpo jamais correspondia. Acabou. Eu e o touro liquidamos com o toureiro em mim.

  Era lindo o homem dizendo tudo aquilo, só eu parada em frente a TV, soluçando. Mas o mais impressionante veio depois:
- Sabe, são mais de quatro décadas e eu ainda sinto os chifres do touro cravados em mim. Às vezes parece que acabaram de furar a minha pele e a dor é intensa. Noutras, parece que se entrelaçaram às minhas costelas e fazem parte do meu corpo. Eu e o touro morremos e sobrevivemos naquele mesmo dia. Ele vive em mim agora e eu nele para sempre.

  Depois que um toureiro é ferido, os touros são abatidos; é a prática. Os animais nunca saem vivos.

- Nunca foi fácil saber que eu levaria uma vida, partida pela impossibilidade do que eu mais amava, mas fui decidindo, fui aceitando o destino e renunciando a mais antiga e forte paixão. Faço isso ainda hoje.

  Os sentimentos  se inscrevem na gente de maneira muito clara, quase materializada, são os chifres do touro nas nossas costelas.

   Então, desligo a TV e sei que numa manhã dessas, andando pela cidade, o chifre do touro alcança as minhas costelas , quase me dobro de dor, mas me mantenho firme na caminhada, quando penso que os chifres e as costelas são uma mesma matéria. As lembranças são fragmentos no fundo de um rio, basta que atirem  uma pedra, numa brincadeira ou que um vento muito forte ondule as águas e elas, de novo, vêm à superfície. Estarão sempre lá, não há um só rio completamente puro, os restos de folhagens e pedaços de frutos ficam submersos e sobem em um ciclo de movimento e vida.

  Olhando pela janela a lembrança passa como um filme acostumado, só olho para partes dele. Não ouço as vozes. Mas aí é deixar passar. Como veio, também vai embora. O pensamento, a memória do touro. Os chifres dele ainda ficarão na costela. Mas o sofrimento descolou de lá e abriu espaço para um dor levinha.
  A vida dele é outra há muito, mas do touro ele jamais se livrará. Ninguém, de fato, sairá complemente vivo da arena. Voltar a desafiar o touro e saber que não é capaz de vencê-lo ou ficar na plateia, sem os gritos, mas com as lembranças do que foi e a dor nas costelas; é uma decisão que se repete todos os dias.



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