sábado, 20 de agosto de 2016

Do que aprende, sempre acaba se esquecendo

  A cama desfeita, a roupa batendo na máquina, precisa levantar para estendê-la no varal espremido da área de serviço. É preciso levar o cão para passear, já passa das nove e ele está inquieto, sobe na cama, late e volta a descer, já derrubou alguma coisa na cozinha, mas ela não levanta para ver. Sem coragem de começar o último dia. Sem disposição para admitir que é o último. Escuta o barulho da bomba d'água do prédio e pensa em ficar ainda mais tempo na cama, envolvida pelo ruído rouco que a bomba faz e ao qual ela se afeiçoou tanto. Quando escolheu o apartamento era para ser o do andar debaixo, não teria o barulho, mas no dia da visita, a chave não abriu a porta e o porteiro ofereceu a chave do apartamento da cobertura, ambos eram iguais, ele disse. Mas quando entrou, os azulejos de flores em rosa e verde água, da cozinha, disseram que ela tinha que ficar. O porteiro falou da maior possibilidade de vazamentos, já que os apartamentos de cobertura ficavam mais desprotegidos e advertiu do barulho da caixa d’água, mas nenhum dos incômodos, em quatro anos, se concretizou. Ao barulho se acostumou e os vazamentos sempre foram nos apartamentos de baixo. Os azulejos eram só neste apartamento, que falta sentirá dos azulejos, um dia...

  Já são quase dez da manhã e pobre do cachorro, pagando pela irresponsabilidade da dona. Ela se move por ele, pela culpa de ser tão má, com aqueles que mais a amam, olha para o cão e avisa:
 - Se não fosse por você, hoje eu não levantava de lá, viu?
  Ele ouve, se anima ao vê-la de pé, escovando os dentes e depois procurando os tênis, como um atleta, esperando pela largada, ele fica em frente à porta, concentrado, preparado, com o coração acelerado. Vai saber porque inventou de ter cachorro, devia ter um gato e ficariam os dois, lânguidos, tomando sol na cozinha, sem a agitação desse cão que parece sempre pronto para uma corrida. Mas foi ter o cão e amar o cão. Errou duas vezes e, sem perdão, é retirada da cama como punição.

  Descem os dois pelas escadas geladas do prédio, só sabem do sol, porque o viram da janela do apartamento, mas nas escadas é só breu e lâmpadas vagabundas. O cão é um tipo de chefe de excursão, vai a frente fagueiro, dando pulinhos, balançando o rabo e sendo simpático com qualquer coisa e pessoa; já o viu distraído com as coisas mais improváveis, com uma tampa de caneta perdida, sacolas dançando com o vento, panfletos de todos os tipos jogados ao chão. O cachorro é isto: um descobridor do mundo mínimo e dispensável. Quando pensa nisto, se lembra que ele olha para ela com o mesmo entusiasmo e afeição com que olha para a tampa da caneta na calçada.
- O cão me ama, porque sou mínima e completamente dispensável.
  Sorri e afaga a cabeça do cão pela primeira vez no dia. Ele gosta e olha para ela agradecido e surpreso, como olha para as sacolas que voam perdidas na rua. Atravessam as mesmas ruas, viram as esquinas que conhecem desde o início dessa relação, ele late para os mesmos outros cães das casas vizinhas, mas parece começar uma vida agora.
-  Esse cão que me convoca à vida, que, por vezes, eu resisto; esse cão que olha para minha inutilidade com total condescendência; esse cão que me leva para as mesmas ruas, com olhos de descoberta; esse cão que nunca soube porque o tive, na verdade, ele bem mais me teve do que eu a ele. Esse cão não virá amanhã.

  Passam pela praça, ela o solta e ele corre na areia com os outros cães, entre todos ele é o mais desobediente, atrapalhado e desordeiro, mas hoje ela não chamará sua atenção, não se envergonhará quando ele resistir à coleira, à ela, ao fim. Hoje, ela ficará na praça até ele querer ir embora. Desistiu duas vezes de se mudar do apartamento, porque nos outros condomínios não aceitavam animais, perdeu amantes que não gostavam da companhia constante do cão, alguns amigos deixaram de frequentar sua casa, por causa do cachorro brincalhão que mordia sapatos, desfiava meias e babava nas roupas. O cão afastou-a de muitas coisas e pessoas, modificou suas relações, mas deu a ela uma infinidade de outras, inclusive o próprio sentimento pelo cão, que parecia inflar dentro dela, esmagando o seu coração nesta manhã.
- Meu cão, o cão com quem sonhei desde a infância. Meu Trótski, meu bravo Trótski, que não sabe que a guerra está perdida.

  Sentada em frente ao tanque de areia, próxima de outros donos de cães, queria pedir algum consolo, um conselho para que despedida doesse menos, mas se ela sucumbisse, o cão se envergonharia dela, sua dona tão corajosa. Quanto mais doía nela, mais alegre o cão ficava, mais corria e com mais fôlego latia.
- Cachorro idiota. Vai me abandonar.
 - Trótski, venha! Trótski, acabou! Trótski...
  E o cão não vinha. Entrou no tanque de areia, alguns cães a ameaçaram e Trótski veio resgatá-la, ela aproveitou a indulgência do cão, enlaçou-o com uma das mãos e passou a coleira com a outra.
- Podia ter saído com mais decência, mas você nunca obedece.
  Passaram pelos outros cães, voltaram pelas mesmas ruas e ela querendo que durasse mais, que nunca perdessem esse instante, demasiadamente repetido, mas sublime.

  O veterinário estava marcado para as duas. Voltariam para o apartamento, o cão ficaria ao pé dela enquanto ela preparava o almoço e depois ambos sentariam no chão da cozinha e apreciariam as flores verde água e rosa dos azulejos.
- Que lindos os azulejos, não Trótski? Já viu cozinha mais bonita? Agora levanta, vamos ao médico!
Enquanto escovava os dentes, viu o cão posicionado na porta. Como se despedir sem dor? Como deixar o cão e ser sem ele de novo? Como aprenderia a vida sem o professor dos últimos anos?
- Nunca mais terei outro cão!

  O cachorro estava condenado, o alívio estava combinado com o veterinário. Marcaram às duas, mas ela disse que não ficaria para vê-lo fechar os olhos. Não podia. O veterinário disse que entendia. Mediaria uma passagem sem dor, como se agora já não doesse com toda a força do mundo, no coração dela. E o cão pela rua, desavisado da morte e a dona segurando o cão, com lágrimas que não acabavam. Chegaram ao portão da clínica, o cão nem resistiu à entrada, mais dor ela sentiu, porque nem brigar ele queria. Tocou o interfone, o cão latiu para um outro cão que chegava. Trótski sempre tão cordial. A dona puxou a coleira e, agora, era ela quem comandava a excursão.
- Bora, Trótski! Bora!

  Não podia ir até o fim. Mais um dia que fosse, mais uma última manhã dessas e já valeria a pena. Isso era o que ela queria dar ao companheiro: caminhadas, o sol, os azulejos de flores da cozinha, o barulho da caixa d’água. Porque foram ganhando os espaços, porque foram vencendo os cansaços, porque prolongou a estadia do amor e andou sem querer desistir. Agora, não sabe como ir, sem ele, tampouco como deixá-lo ir sem ela; mesmo que saiba que não ficará por muito tempo. Não adianta acordar durante um sonho e tentar voltar a ele. Mesmo antes de abrir os olhos, mesmo depois de simularmos um final
  Do que ela aprende e sempre se esquece é que o tempo de duração das coisas não passa  por ela, elas vão sem avisar e chegam, quando ela ainda nem arrumou a cama. O cão correndo pela casa, ela estendendo a roupa que lavou pela manhã. Um dia não serão mais os dois, mas hoje ainda são.




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