domingo, 9 de outubro de 2016

Fez que não me viu como só os covardes fazem

- Melhor época da minha vida, só que eu fui burro e deixei escapar.                

  Cheguei trinta minutos antes - isso quase nunca acontece - já pedi o segundo café, terminei o livro e agora espero por alguém que se atrasou. Hoje sou eu quem espera. Recebo a mensagem, avisando do atraso, enquanto dois homens conversam no café, na mesa atrás de mim e a frase me detém. Já tinha ouvido alguma coisa da conversa atrás de mim - inevitável - mas nada que me interessasse. O livro era melhor.

  Mas, então, vem a frase, voa para mim, como se soubesse que caberia na minha mesa. A frase instiga, me interessa e pousa no cardápio, torço por uma história que a explique, mas acabe antes da minha provável companhia chegar. Vou ouvir a conversa toda, vou. Vou ser completamente invasiva, mal educada, vou ficar curiosa, vou querer perguntar. Em algum momento, vou me virar para trás, depois de gostar deles ou não, de escolher um dos dois ou achar os dois completamente imbecis, vou conhecer os rostos deles. Mas só depois de ouvir as vozes, de estudar os tons, de achar um deles sarcástico demais e o outro pacífico demais, vou acompanhar o enredo, vou ficar atenta à história, quase queimar a boca com o café e depois deixá-lo esfriar além do ponto. Vou beber com eles e levantar a minha xícara, num brinde solitário, a cada curva interessante que os passos do narrador arrependido fizer. Vou invadir suas vidas, vou querer dar minha opinião, vou perdoá-los, porque sou condescendente com desconhecidos; vou escolher um trecho do livro e dedicá-lo ao mais insensível, porque sou teimosa e sempre escolho o lado mais difícil. Vou pedir um pedaço de bolo e oferecer uma colherada para aquele que eu não li a parte do livro, porque me arrependo de ser bondosa com um e negar delicadeza a outro. Vou passar alguns minutos da tarde com eles e eles não saberão.

  Eu me ajeitava melhor na cadeira, tomava o primeiro gole da segunda xícara, quando a minha companhia chegou. Os dois homens continuaram conversando, mas pediram a conta. Não era para ser eu o compromisso deles, hoje. Não era a minha vida que seria habitada pelos desconhecidos do café. Sem história, só a frase. Minha companhia fala, sorri, muda de assunto, explica alguma coisa que eu não entendo, mas balanço a cabeça; me faz um elogio e eu não escuto, mas fico vermelha e sorrio: - Imagina! A companhia me mostra os papéis que eu já conheço, compartilha inquietações que nem consigo alcançar, fala numa língua que eu não domino, mas continuo parada, paciente e educada; gostando mais do café do que da proposta que deveria, mas não quero aceitar. Não é pelo atraso, tampouco pelos papéis, pela oferta que não me alcança como a frase de minutos atrás, mas preferia não estar aqui com ela. Me comovo com o interesse, mas recuso quando o café já chega com açúcar; perco a vontade do café, sabe? O café com açúcar deixa de ser o meu café.

  Os homens já pagaram a conta, mas não saem. Minha companhia pede licença para cumprimentar alguém da outra mesa. E é aquela exatamente atrás de mim. Ela cumprimenta o homem da frase, trocam algumas palavras, ela volta para minha mesa e eles vão embora. Ela se senta,  suspira fundo, se esquece dos papéis por um minuto e, pela primeira vez, habita a minha atenção. E faz a declaração aliviada, leve, satisfeita no meio de um sorriso:
 - Sofri tanto por esse homem e agora quase não o vi. Encontrei-o várias vezes e achava que ele fingia que não me via. Sabe quando alguém quer fugir por covardia? Mas, só agora, eu sei que ele não me via mesmo, como eu não o vi. Vemos só o que faz algum sentido para nós. Eu não fazia sentido para ele, como ele não faz mais para mim.

  Eu já gostava mais dela e da sua história, mas ela parou a intimidade por aqui. Voltou para a conversa que eu pouco entendia e fiquei presa entre as duas confissões. E se fizessem parte de uma história só? Se ela era a melhor época da vida dele e o que ele chamou de burrice, fosse covardia? Se ele a enxergou todas as vezes, mas fingiu não a ver? Se ela estivesse certa antes? O que eu poderia fazer com as duas histórias agora? Ainda teria tempo? Eu sou a responsável?
Ela continuava falando, meu café esfriava na xícara e eu pensando nas vezes que ele a viu e fez que não.

  Assistiu-a subindo a rua, segurando as sacolas pesadas, tentando não perder uma moeda, um tomate ou o molho de chaves que mal cabiam no bolso, ultrapassou-a e não ofereceu ajuda. Num julgamento interior se limitou a sentença:
- Não devia ter comprado tanto.
  Viu-a subir no ônibus cheio com os braços ocupados pelos livros, tentando encontrar uma melhor posição. Dava para ver ela sonhando, trabalhando, estudando, amando outro ou ele ainda, mas não ofereceu o lugar ou pediu para carregar seus livros. Viu-a sozinha à noite, subindo a rua, com medo, sem dinheiro para o táxi, mas  esperou ela subir e seguiu por um outro lado. Se arrependeu da falta de coragem, mas achou que era tarde para ser valente, não quis voltar atrás. Aparvalhado, ouviu, viu, soube o tempo todo dela, mas nem no café se levantou para dizer que a tinha visto. Fingiu que não era com ele, como só os covardes fazem.

  Eu sabia da história da vida dela - pelo menos achava que sabia. Mas não encontrei um só meio de contar. A covardia era dele, a superação era dela, o café gelado era meu e o tempo não era de ninguém; ele é dele mesmo, o único dono da sua própria coleira. Se eu dissesse que todas as vezes que ela achou que ele a viu, ela estava certa? Apaziguaria suas lembranças ou remexeria em restos de vida repousados no fundo de um lago agora tranquilo? Era minha a decisão da escolha? Se não era, por que então, eu ficar sitiada entre as duas confissões?

  A dor de saber-se vista, mas completamente ignorada pelo medo que eles têm dos livros na minha bolsa. Fez que não me viu porque a minha coragem desafia o seu medo, a minha obstinação o lembra da suas desistências recorrentes, a minha poesia recorda-o da sua insatisfação com a vida. Porque a minha melancolia lembra-o que ninguém é completo e feliz o tempo todo, mesmo amando e sendo muito amado e que os sonhos vagueiam muito e quando param nas nossas mãos, quase sempre, não sabemos o que fazer com eles. Fez que não me viu, porque o meu afeto era o café que ele tinha medo de se acostumar e um dia não trazerem mais.

  Fez que não a viu, muitas vezes, como só os covardes fazem. As melhores épocas da vida dele vão ser sempre onde ele não estiver, porque o medo entra antes dele em todos os lugares. Gosto dela, porque não sofre mais e também quase não o vê. Volto aos papéis com mais simpatia, marcamos um segundo encontro. Eu possivelmente chegarei atrasada, mas entro sempre com, pelo menos, um passo antes do medo. Nos despedimos e eu guardo essa possibilidade de história comigo. Fiz que não ouvi nada, ainda, como só os perseverantes fazem.


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