domingo, 13 de novembro de 2016

O original é cópia

  Já desligou a TV, jogou alguma coisa no lixo da cozinha, porque ouvi o pedal da lixeira subir e a batida seca da tampa, depois que retira o pé. O menino deve estar esperando na sala, porque o homem não gosta de atraso; já ouvi dezenas das suas repreensões. Com a faxineira, o táxi, o irmão mais novo, a namorada, até com o carteiro ele já reclamou com o prazo do recebimento da fatura do cartão de crédito. Acho que ele tem essa ilusão de que o tempo dos outros pertence a ele. Ele é alto, controlador e eu nunca gostei dele. Essa reclamação, essa aspereza, o jeito com que bate o portão da frente e cumprimenta. Desdém, sabe? Desprezo com pequenezas da vida. Queria gostar, ou pelo menos, não dispensar uma energia desgostando, mas eu escuto a voz dele e sinto que não gosto. O que eu posso com o não-gostar? Talvez tanto quanto o gostar. Nada. Não posso nada.

  Rodou as chaves, escuto o barulho, ele vai sair agora e eu calço o chinelo, pego  o saco com o lixo que não levei à garagem mais cedo e abro a minha porta, eles descem a escada e passam por mim. O menino faz a pergunta de sempre:
- Quem é você?
  Ele me vê toda semana, mas sempre faz a mesma pergunta, como num filme em que a personagem perde a memória recente e precisa ser apresentada todos os dias a mesma pessoa. Respondo coisas diferentes, a cada encontro, começo sempre com o meu nome e adiciono uma informação qualquer depois, algum gosto, algum número, algo que eu nem sei se ele se lembrará, mas vale o esforço.
  O pai me cumprimenta, puxa o menino e descemos os três para a garagem. Ele pergunta o que vou fazer, mas o pai interrompe, antes dele terminar e eu responder.
- Para de incomodar os outros. Menino curioso.

  Sempre que o menino vem eu tento vê-lo, ao menos uma vez. Quando a mãe, num encontro desses no corredor, sugeriu que eu o olhasse quando ele viesse visitar o pai, eu entendi sua angústia e, desde então, sou essa vizinha que acompanha a rotina de um homem de quem não gosta, só para ver o filho de uma mãe que teme nem sei o quê. Depois do pedido, quando a encontro ela parece constrangida, pela intimidade que quase partilhou com uma desconhecida, não me pergunta nada. Mas parece que confia que se eu notasse alguma anormalidade diria a ela. Nem sei se diria, mas continuo a minha investigação.

  Descendo as escadas, percebo o quanto o menino começa a se parecer muito com o pai, quando fecha o portão, reclama do sol, se irrita com o latido do cachorro do vizinho. E eu gosto tanto dele, que me conhece pela primeira vez toda semana, começo a temer pela influência do homem de quem não gosto. Por que as pessoas se parecem tanto com quem convivem? Digo, quais referências nos tocam mais? Por que não a mãe? Tão simpática, tão vulnerável, tão devotada ao filho? Ele tem olhos azuis como os dela, não podia ser afável também como a mãe?

  A imitação não é fácil. Dependendo do contexto ou da habilidade de quem imita, pode ser patético até. Mas há uma infinidade de coisas que aprendemos por imitação. Ninguém senta e explica, não há um livro ou aula marcada, fazemos porque copiamos o que alguém fez antes de nós. Quando criança isso é ainda mais evidente, palavras, gestos, expressões, são imitações mais ou menos bem sucedidas, mas adultos ainda fazemos muito. Colamos do colega ao lado, se somos confrontados com um desafio pela primeira vez. Começamos pela observação do objeto da  cópia. Esquadrinhamos os gestos, cada um deles, colocamos uma lente que amplia os detalhes mais sutis: o cenho sutilmente franzido, quando há dúvida ou preocupação, a boca meio torta, se há desconfiança, as mãos entrecortando uma fala, quando a palavra não alcança completamente uma explicação ou existe urgência do entendimento. Quase tudo é passível de um aprendizado através da cópia, a filha mais velha da faxineira do prédio, imita a mãe abaixando a cabeça quando responde ao cumprimento de algum morador, já a mais nova não, ou copia outra pessoa ou não sabe imitar, porque ergue a cabeça e conversa sem medo com qualquer um. Quase sempre é repreendida pela mãe, depois, mas a cabeça não abaixou ainda.

  Sentimento, mesmo, também acho que é um tipo de aprendizado que fazemos por imitação. Não a sensação em si, o fogo ardendo, o calor brando que conforta, o gelo da indiferença, a brisa de um sossego, mas dar nomes a eles, organizá-los dentro de si. Saber identificar o que é um ou outro. O amor, por exemplo, não nasce só da imitação, mas para saber dele, dar gestos, definir mensagens de que se ama ou compreender-se amado, é necessário referências, modelos que se instalam na memória da gente; não definidos ou definitivos, mas um começo, um caminho que é apontado. Relacionamentos, em grande parte, são imitações de padrões mais ou menos repetidos que temos contato. Como decide-se, por exemplo, quem é amigo e quem não é? Há uma expectativa sobre o que a amizade é, em ambos os lados, e se elas se identificam é bem possível uma relação começar aí.

  Coloco o lixo no depósito e o menino já está dentro do carro com o pai, passam os dois lentamente por mim e o menino abre a janela, me chama pelo nome e me diz para eu ter um bom dia. Nos olhos azuis dele eu vi a  mãe. No sorriso de gentileza dele o pai estava completamente afastado.
  Se eu encontrar com a mãe no corredor um dia desses, vou dizer que o seu menino é todo ela, que ele se parece a cada dia mais com a mãe. E vou querer muito acreditar nisso.

  Não sei do que sou feita, prefiro nem rememorar cada referência minha, me acovardo com a possibilidade de ser alguém que, hoje, não gostaria de ser. O fato é que, nem de longe, estou pronta, mas essa gente toda a quem vi passar pela minha vida me habita num lugar que eu desconheço a porta e nem sei se tenho a chave, para o caso de um dia eu encontrá-la. Imito. Ainda imito muito os gestos, as palavras, os sentimentos que eu tento organizar. Tento sentar sempre ao lado não do colega mais inteligente, mas do mais solidário. Se errar a resposta, seremos os dois a nos apoiar no fracasso. Já nem choro com os zeros, porque compartilho.

  Saio da garagem meio escura e o sol quase me cega. De olhos fechados, sinto o calor dos raios, ando devagar, sento em frente ao prédio, me estico ao lado da filha mais nova da faxineira e tomamos sol, as duas, como duas lagartas do deserto.
- Quer um sorvete?
Eu pergunto.
- Mas é claro!
Ela responde certeira.
Essa menina saiu a mim, eu penso. E rindo, descemos, as duas, a rua até a sorveteria.
- Dois de chocolate, por favor.
Ela é quem pede.
Não abaixamos a cabeça nem para conferir o troco. E eu já nem sei quem imita quem nessa história, mas até que gosto do que somos.



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