sábado, 31 de dezembro de 2016

As trinta mãos que eu soltei

  Demoramos muito, às vezes, a entender o que temos nas mãos e, ainda sim, evitamos muito a soltar. Como quando alguém que dorme, segurando o controle da TV e, de repente, se assusta se tentam tirá-lo das suas mãos, não há entendimento do que é, necessidade alguma em protegê-lo, mas na confusão do sono, fechamos as mãos mais forte e disputamos, em sonho, o desnecessário. Às vezes, a mão fechada vem do costume, do hábito de não desistir. Há, também, mãos que insistimos em tentar segurar, porque é lembrança, afeto, história. Gente com que começamos o jogo e achamos que é equipe para sempre; deram o apito, já passou a premiação, foram todos para a casa, mas o esforço de encontrar as mãos continua.

  Sexta-feira,  pouco mais de quatro da tarde e a rua já cheira a álcool. Eu desço sóbria. Não há música ainda, nem fogos, nem um emaranhado de restos de festas que se emendam pelas calçadas, o movimento na avenida principal ainda é o típico. Penso no itinerário que vou fazer, debaixo do sol, quero ir caminhando: vou ao caixa eletrônico, ao supermercado comprar pão e chá e depois, à loja do centro comprar xampu. Passo pela mulher, sentada na calçada com um sacola plástica do lado e uma lata de cerveja que ela bebe sozinha. O cheiro que eu senti, quando comecei a subir a rua, vem dela.

  Uma jovem mulher, antes das cinco da tarde, bebendo na calçada. Cabelos presos, calça jeans apertada, uma camiseta molhada de suor, metade do corpo na sombra de uma marquise, só pernas e pés sob o sol. A lata de cerveja gelada ela intercala, levando à boca para matar a sede, a vontade ou o tempo, passando a lata na nuca e, por último, levando até a testa.
  Sentar na calçada, não ter que correr atrás do último ônibus, não ter que atender à porta ou ao telefone que nunca são para ela, não ter que explicar onde os filhos que não são dela estão, não ter que conter o cão do qual não é dona, quando chega uma visita, não ter que ser discreta, calma, paciente, nem falar baixo, nem falar sempre sim. Depois das quatro, na calçada de um bairro que ela não mora, mas passa a maior parte do dia, a mulher ritualiza sua liberdade e um começo de feriado. Sem roupa branca, abraços, música alta ou luzes. Uma celebração silenciosa, encolhida, solitária e resistente. Não vai chorar, não vai correr para chegar em casa mais cedo, não vai fazer compras para ceia alguma, vai só terminar a cerveja, debaixo de meia sombra e depois seguir o curso do seu próprio rio, ao menos, até segunda.

  Passo por ela, mas sou invisível, ela fecha os olhos justamente na minha passagem - nada mais importante do que a celebração dela. O cheiro da cerveja penetra na minha pele, narinas, cabelos. Desço a rua meio embriagada pela festa da mulher na calçada. Lembro que depois de comprar o xampu, tenho ainda um encontro, onde chegarei quinze minutos atrasada, esperarei mais quinze pela chegada dele que vai dizer que ficou preso no trabalho, ao telefone com a mãe, no mecânico, porque o carro sempre dá problema ou no elevador que quebrou. Vai dizer que sente muito a minha ausência nos seus dias, que quase não me liga para não me chatear, vai perguntar sobre meu cachorro que morreu há três anos,  minha avó que morreu há dois e sobre o cabelo que deixei crescer há mais de cinco, não vai se constranger cada vez que eu disser que são notícias velhas de outros finais de ano. Vai olhar o celular sobre a mesa a cada dez minutos e se desculpar porque tem algo importante na iminência de acontecer. Vai contar sobre as suas viagens, seus amores, seus empregos e perguntar quanto tempo mesmo eu me mudei.
- Oito anos.
- Isso tudo?
- É.

  Não vou contar sobre a mulher que vi bebendo na calçada, mas só vou pensar nela e no quanto a cerveja dela cheira em mim. Ele vai me dar uma agenda, uma caneta, um relógio, um livro e um peso de papel, eu só vou gostar do livro, mas vou dizer que gostei muito de tudo e que ele conhece o meu gosto. Vai perguntar:
- Como vai a vida?
E eu vou responder com um sorriso, depois de colocar os presentes de novo dentro da sacola:
- Muito bem. Vou indo bem.
  Ele vai ficar satisfeito com a resposta, vai dizer que eu sempre mereci o melhor, que
 a terapia o fez querer ser mais presente na vida daqueles que ama e que no próximo ano nos veremos mais. Vai me convidar para passar uns dias em algum lugar exótico nas férias dele, mas nem vai saber que eu não tenho férias. Antes de faltar assunto, vai recorrer a alguma lembrança que temos em comum e eu vou sorrir pela décima terceira vez da mesma história, no nosso décimo terceiro encontro de final de ano.

  Ele vai perguntar se eu vou querer beber alguma coisa e mesmo querendo a cerveja da mulher na calçada eu vou só pedir uma água com gás, gelo e limão, porque não quero me embriagar na frente dele. Ele vai reclamar da falta de opções no cardápio, do serviço e do calor que faz na cidade. Vai perguntar como eu aguento morar ainda aqui e eu vou querer dizer que é pela mulher na calçada depois do trabalho, pelos filhos dela, pelas lutas dela, mas vou só dizer:
- Acostumei.

Vou mentir que o conheço, vou fingir que ele é próximo, não vou dizer que ele não sabe nada, nunca soube, vou querer ir embora e devolver os presentes, só com o livro eu queria ficar. Ele vai atender a uma ligação, vai dizer que precisamos nos ver mais e que eu estou ótima com esse cabelo. Vai se desculpar pela pressa, vai me dar o cartão da loja que ele comprou o relógio para eu trocar se eu não gostar.
- Tem outros modelos.
  Eu que não uso relógios vou colocar o que ele me deu no punho, porque eu sou uma farsa. Vamos nos despedir com um abraço e ele vai achar que eu andei bebendo, porque vai sentir o cheiro da cerveja da mulher em mim, mas eu não vou explicar nada, que pense o que quiser. 
- vamos nos ver mais, prometo. Ano que vem vai ser mais tranquilo. Dê um beijo em todos e um especial na sua avó, diga a ela que eu vou visitá-la assim que eu entrar de férias. Vamos combinar de você ir conhecer minha nova casa, pode levar o cão, porque tem espaço. Quer que eu te deixe em casa?

Vou dizer que não, comprar uma cerveja no supermercado e procurar pela mulher na calçada.

 Vou ao caixa eletrônico, ao mercado e à loja do centro, enquanto passo o cartão para pagar o xampu, recebo uma mensagem. Saio da loja, mudo o trajeto pensado e volto ao mercado, compro duas latas de cerveja gelada, subo a rua, procurando a mulher. Se ela estiver na calçada, vou oferecer um brinde à liberdade do feriado e a decisão de um recomeço sem repetições. Não irei ao encontro este ano, não mais.    A mulher do outro lado da rua, com sua sacola e a cerveja do lado, não espera nada, nem ninguém; nem o garçom trazer a próxima, encher o copo ou fechar a conta. Não aguarda quinze minutos, nem abraço ou uma promessa de final de ano. Bebe, engole tudo o que atravessa a garganta durante todo o ano e olha para o céu.

  Subo a rua à procura dela, solto trinta mãos este ano, se me quiserem que me sigam e me reconheçam, eu é que não vou ficar mais no desfiladeiro, administrando quedas e ligando para a emergência. Acabo de soltar a trigésima mão, desequilibro-me, mas sinto que eu não caio agora. Eu não me levantava porque ficava debruçada segurando as mãos que há muito se soltaram de mim. Acordei do sono, o controle da TV não faz nenhum sentido para quem não quer mais assistir à TV.



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