quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Eu sei como os pássaros dormem

  Há doze dias eu sou vista pelos mesmos olhos;  há mais de uma dezena de dias uma angústia me encara, me interroga, não se afasta. No início, recusou as minhas mãos, desconfiou das minhas intenções,  se afastava um pouco a cada passo que eu dava em sua direção. Arredia, quase fugiu, apelei para um cárcere contingente para tentar salvá-la. Doze dias de um animal, agora, dócil, circulando ingênuo pelo meu apartamento, como se nunca morresse, não soubesse que eu não sou sincera, que os meus afagos, comidas e gotas são compaixão e não companhia. 

 Podia ter sido noutra rua, num bairro diferente, talvez outra cidade ou estado. Podia ter sido na Rússia, México, Ilhas Cayman ou só em outra hora, num dia em que eu acordasse mais tarde ou saísse mais cedo. Ou eu podia não ter notado, as crianças poderiam ter continuado o jogo e o barulho dos gritos, das comemorações ou brigas ter silenciado os arrulhos de socorro. Poderia não ser o lixo, o lacre, o acidente, a vida vasculhando o que não era para ela; a pomba seduzida pelo plástico azul. Mas foi o que a rua, a cidade, o transtornado país, as horas, os olhos, as sincronicidades de destinos permitiram: uma pomba quase arrebentada na calçada.

  Uma dúzia de crianças a sua volta e a pomba com uma das patas quebrada e um lacre de plástico agarrado ao bico, só parei quando ouvi:
- Puxa logo, ela tá sufocando!
  Não tinha nenhum outro adulto por perto, as crianças faziam uma roda e achei que era alguma delas no centro, precisando de ajuda. De longe, eu perguntei o que era e já fui me aproximando, abriram a roda e no meio dela uma pomba cinza, fragilizada, assustada e com um plástico azul prendendo o bico. Uma vizinha se aproxima, as crianças pedem que eu puxe o pedaço de plástico, que cobre o rosto inteiro da pomba. E eu obedeço, nem penso, me agacho, tento me aproximar e por três vezes ela evita, na quarta, dou um pulo, alcanço o plástico e o puxo para salvar a vida da pomba e evitar o choque do testemunho de uma morte por crianças ainda tão pequenas. Puxo a peça e a pomba instantaneamente parece aliviada. As crianças gritam pelo meu gol e a pomba se assusta mais. Ela tem dificuldades de locomoção, a vizinha manda o filho chamar o veterinário da clínica da rua de cima e ficamos as duas com a dúzia de crianças socorristas e mais algumas que chegaram para acompanhar o caso.
  Uma moça de jaleco se apresenta, é a estagiária da clínica, ela se abaixa e a pomba parece mais receptiva nesta aproximação do que com a minha, me ressinto. Passa a mão sobre a pata dela que não se move, acaricia o seu bico, agora desobstruído, e diz que vai levá-la para examinar melhor. Antes, pede uma caixa, algum lugar para colocá-la para não apertar nenhuma parte do corpo, que pode ter outros ferimentos, a vizinha oferece a gaiola em que geralmente transporta seu gato e a estagiária aceita. Mas a pomba sente o cheiro do seu inimigo, eu sei. Se desespera, se afasta da gaiola, as crianças gritam, a estagiária tenta pegá-la, ela resiste, arrulha com mais força e o som parece abafado, dolorido, amedrontado. A moça se esforça, ajoelha numa queda e perde a pomba, do outro lado, eu me atiro e, de uma só vez, como fiz para salvá-la pego o corpinho delicado e enfio-o dentro da gaiola. Fecho a grade e aprisiono a pomba, numa intenção de bondade. Vamos eu e a estagiária para a clínica, algumas crianças nos seguem e a pomba se debate na casa do perigo.

  Somos as três na clínica, mais uma secretária que não parece bem humorada. O veterinário saiu para um atendimento, a estagiária pede que eu fique para levar a gaiola e eu obedeço, de novo, sem nenhuma tentativa de me esquivar. Ela retira a pomba com cuidado do fundo da gaiola, eu a ajudo, segurando uma das grades, a pomba sai sem resistência, cansada e entregue ao desconhecido. Fico mais um pouco e explico como a encontrei na rua. Falo do plástico e a moça de jaleco, com seu nome bonito bordado num dos bolsos, esquece a pata e se interessa mais pela peça que estava agarrada ao bico, ela pede para eu ajudar a sedar o animal e eu fico, não vou para casa mais uma vez. Parece que hoje é o dia que eu não farei o jantar, ouvirei a música ou escreverei, a pomba cinza muda os meus planos. A pomba fica mais mole e com os olhos semicerrados, a estagiária usa uma pinça para abrir o bico do pássaro, agora completamente entregue. Ela pergunta como eu tirei o objeto e eu explico de novo:
- Um puxão, de um só vez!
  Ela balança a cabeça. Eu não salvei a pomba coisa nenhuma. Desconfio. Ela explica que o pedaço de plástico, um lacre de garrafa descartável, estava já na traqueia da pomba e quando o puxei, uma parte do anel ficou presa na garganta dela. Se tentar tirar,  possivelmente a traqueia, já sensível, virá com o anel. Teria mais chances se o pedaço agarrado fosse maior.

  Eu não salvei a pomba, só acelerei ainda mais a sua aproximação para a morte. A estagiária explica que o animal possivelmente só terá mais alguns dias de vida, qualquer alimento, um arrulho mais forte, até o suspiro da pomba cinza poderá deslocar o pedaço do plástico e ela ter uma hemorragia. Diz que dará alguns remédios para dor e que eu poderei cuidar dela em casa, até que ela morra. Saio com a mesma gaiola, uma pomba adormecida, com uma das patas imobilizada, condenada a acabar, dentro dela. Envergonhada me esqueço do meu gato, da minha rotina imprevisível e assumo a minha responsabilidade pela vida que a minha imperícia e urgência abreviaram. Meu gato já se acostumou a ela e ela não tem mais medo do meu gato; não me atentei sobre o perigo de se afeiçoarem. Mas o que eu poderia fazer? Queria dar bons últimos dias a ela e o gato é uma companhia. Desde então, tenho os dias em sobressalto, durmo mal e acordo em vigília. Todos os dias, acho que é o dia da morte da pomba cinza. Se o sino da igreja toca  e eu estou afastada dela, eu corro logo porque acho que é a hora da sua morte; se me atraso, se demoro demais na rua, se alguém a quem há muito não vejo me liga ou eu tenho notícias, eu penso logo na vida da pomba, em tudo eu vejo um sinal. Se esfria, tenho medo, se esquenta mais do que o normal, desconfio. Tudo é suspeita e suspensão, mas a pomba não obedece a nenhuma desconfiança, segue seus dias pelo meu apartamento e numa amizade surpreendente com o gato.

  Às vezes, olho-a de longe, da minha cama e acho que ela está morta, mas só dorme. Eu sei a diferença, porque tive já um pássaro que eu vigiava o sono e que, um dia, morreu na minha frente; eu sei como um pássaro dorme. Uma vez por semana levo-a à clínica, o veterinário a examina, a estagiária me consola, porque ela também sente pela vida da pomba, ela entende o animal, é solidária a ele e está certa, sua formação está ligada a isto, mas a minha angústia, essa despedida esperada, mas indesejada, esse lacre na minha garganta eu não posso explicar a ninguém. Há doze dias que o olhar da pomba me alveja, como se soubesse que eu a matei. Vivendo no deserto de futuro, que não está para ela e parece, por isso, também não se apresentar para mim, a ameaça à vida da pomba me afasta da esperança.

  No final de semana, terei uma viagem, outra pessoa se encarregará do gato e da pomba, no sábado de manhã darei as gotas, prepararei o alimento e me despedirei do pássaro cinza. No domingo, quando eu voltar e a pomba já estiver morta, eu vou saber a dor completa da injustiça. Ninguém pode salvá-la eu sei seu segredo, será que ela sabe um meu? Me olha como se também soubesse de mim, o que eu não sei. Agonia de viver com esse pedaço de plástico, segurando a garganta, agonia de não viver.
  O gato olha para a pomba, a pomba me busca virando o pescoço, me encara de frente e gato e pomba parecem articulados para um interrogatório, eles certamente desconfiam de um segredo.
- Não, ninguém vai acabar hoje. Vamos à vida!
Minto. porque não sei ao certo. Ambos me olham e voltam a ser gato e pomba. As horas garantem a nossa continuidade. Do amanhã, não sei de nada.



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