terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Pequeno inventário de possibilidades

  Parece prece, mas não é. Porque não tem na intenção um deus, um céu ou paraíso, nem santo é invocado. Talvez seja poesia solta, dedicada ao vento ou uma prosa acostumada entre amigos antigos; agradecimento, sem destinatário, pelo instante, por um sonho recém-chegado ou só pelo vislumbre do espectro de uma pessoa esperada - pequenas preciosidades.
  Parece vazio, mas tem tanto contentamento, deve ser leveza de ser só, só. Sem aflição, sem angústia de espera ou desespero de ausência; sem gravidade ou importância, deve ser um tudo diluído em um copo cheio de tempo.
   Parece só um resto de cigarro, recuperado no chão pelo mendigo, mas é a injustiça de um sistema, que escolhe, culpa, excluí e abandona. O cigarro aceso nas mãos castigadas do homem é a esperança dele.

  Parece seca, mas talvez seja só uma estiagem no meio do verão preparando solo, sementes, paciência e nuvens que trarão finalmente a chuva boa. Regar a terra com força, se preciso, e delicadeza de chuvisco, depois do temporal.
  Parece quarentena, porque afastou-se da palavra, do gesto, do tumulto, mas talvez seja só uma distância voluntária de ver, ouvir e sentir o que a confusão não permite. Pode ser um mergulho noutras águas, de um jeito novo. Tentativa de aprendizado solitário, escolher as peças e colocá-las uma a uma na torre, sem plateia, sem torcida.
  Parece pálida, mas é brancura de nascença, susto de todos os dias, clara de espanto, incerteza, deslumbramento que tira a cor da face e depois, devolve, quando se acostuma. É a cor de quem não se atira na areia, conhece o mar mais de nome e nunca se queima durante o dia.

  Parece saudade, mas talvez seja um pequeno filme de fotografias amareladas, com lembranças escorregando pelos frames; uma trilha sonora, que suave,  desliza  pelas cenas, se tiver choro é pela beleza das memórias editadas.
  Parece fracasso, mas é só um sonho se abaixando e tomando o impulso do recomeço. Acabado o incêndio, ele se separa das cinzas, recolhe suas forças e volta a brilhar numa faísca.  Pelo desejo da sua chegada, já nem acorda no meio da noite, no colo da promessa, o sonho despertará sonolento e renovado.
   Parece resposta definitiva, mas nada é acabado. Talvez seja uma direção para novas perguntas: quer mesmo isto? Isso é você? Até onde está disposto a ir por isto?

  Parece melancolia, mas é só a calma em um dia cinza, uma visão do mar demorada, os pés na água como despedida, sem ida de fato; mãos que se entrecruzam sem pressa, se acariciam e depois de soltas, ainda permanecem atadas, para sempre, neste tempo.
  Parece busca infértil, caminhos tortos, placas incompreendidas, mas talvez seja a imaturidade do viajante que não compreende, que a urgência pelo fim não adianta viagem nenhuma.
   Parece a mão que não escreve mais, mas é só um intervalo, um gosto novo pela aproximação de outras expressões, se reparar nos olhos, vai ver histórias nascendo ali, vai ler capítulos inteiros nas pupilas brilhantes.

  Parece desilusão, mas é só a descoberta de uma perspectiva menos fantasia e mais humana, ver de perto os poros, os frisos, as pálpebras franzidas de cansaço, a impaciência, o mau humor, a casca do milho de pipoca agarrado no último dente da arcada e, ainda assim, gostar, adorar, amar completamente essa humanidade.
  Parece alma gêmea, mas talvez seja desespero de incompletude, medo de atravessar o corredor sozinho no escuro, de terminar a prova antes de todos e ter que sair da sala, não saber onde colocar as mãos quando for a uma festa e não conhecer ninguém.
  Parece repetição, mas talvez seja uma mesma coisa que nunca é aprendida ou é só superficialmente vista, que volta, porque a lição é anterior a uma outra, que é anterior a outra e a outra. E o jogo não aceita pular casas.

  Parece guerra, mas talvez seja um tempo em que a inquietação dos lados  precise transbordar, as vozes divergentes querem sair. Os fortes gritos de fúria, que depois de ecoarem, se abrandam, voltam a escuta e, finalmente, cabem juntos de novo.
   Parece que ele chega, mas talvez não seja ele, mas um outro que não entenderá o  chamado, mas que ensinará outros que, nunca antes, passaram por aqui. E se agora passa, talvez devesse andar junto, aprender o ritmo de outra respiração.
  Parece falta de planos, mas talvez seja uma tela nova, esperando um traço, uma cor nova, escolhida na paleta antiga de cores primárias, que esperam pela mistura, pela novidade das mãos.
 
  Parece acabar, mas é o fim de um algo e começo de outro logo ali. Verde, fresco, largado na porta com bilhete em caligrafia torta: "Cuide para mim do que eu não fui capaz".
  Parece besteira, tolice, superficialidade, mas talvez seja só uma felicidade, que não se publica, fotografa, nem tenha filtros. Sentimento tosco, sem estética requintada ou legenda engraçada. É, talvez, um algo que dure tanto que nunca possa sair de um estado de total invisibilidade pública.
  Parece que sou eu, mas talvez sejam muitas outras. Talvez tudo o que pareça seja só uma parte muito limitada do que é ou do que poderá, um dia, ser.



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