Mas, muito embora a visão horizontal do cão seja uma placa branca, desumanizada e fria, uma constante paisagem glacial na varanda que faz quase quarenta graus nestes últimos dias, ele ainda tem o céu, os três membros da família, as visitas que a casa recebe e já descobriu um vão entre a grade e o muro de cimento, por onde ele coloca o focinho e acho que sente o que se passa na rua. Então, o cão late. Se eu, em casa, ouço de repente o cão latir, esqueço tudo o que estou fazendo e me concentro no seu latido, me emociono, quase tenho febre de felicidade, porque não puderam calar o que é o cão.
Mas nos últimos meses, a vigilância aumentou demasiado. Escuto sua voz cada vez menos e, por isso, tenho menos momentos de alegria inesperada, pelo contrário, tenho estado ansiosa, abro a janela várias vezes ao dia, coloco a música mais baixa, abandono os fones e qualquer coisa que me distraia de ouvir os latidos que eu espero, que eu sei que pertencem a sua ancestralidade de cão. Demora muito a vir seu som às vezes, chego em casa, tomo meu banho atenta, porque a janela do banheiro é muito próxima à varada do cão, como, leio e deito, esperando um sinal do cão que não é meu, então, durmo e nada neste dia. De manhã acordo com seu latido, demoro a reconhecer se é mesmo dele ou se eu sonho que é.
O controle e essa preocupação da família com os latidos do cão começaram depois de alguns meses da sua chegada. Nas primeiras semanas, pequeno ainda, ele só choramingava, medroso, inseguro, reconhecendo a casa que ofereciam a ele, mal chegava perto da grade, tinha medo do menino, da mulher e do homem, latia só quando se aproximavam muito dele. Mas logo foi se acostumando, reconhecendo as vozes, o barulho do portão, quando a mulher chegava do trabalho, da porta, quando o menino ia para a escola, do carro, quando o homem saia e passou a latir, antes mesmo de os verem. Perdeu o medo da grade, passava o dia olhando para a rua e latia, para os outros cães, para os outros meninos, mulheres e homens, para os carros e carteiros e tudo mais que passava a fazer parte da sua experiência no mundo. O cão existia independente do toque, o cão via, cheirava, ouvia, por isso, a voz.
Mas o vizinho, do apartamento em cima do meu, não gostava de ter que ouvir o cão, começou a reclamar, foi quando puseram a placa na grade e arrancaram o cão da sua contemplação mais urbana. Insatisfeito, o vizinho reclamou mais, queria cada vez menos cão e mais silêncio. Começou uma guerra entre o homem e a família, mas só o cão é prejudicado. Fizeram um canil nos fundos da casa, passaram a prendê-lo quando as visitas chegam, não o deixam ir à chuva, protegem-no das folhas que caem das árvores quando venta, mas o homem continua. A qualquer sinal do cão, grita, ameaça e o cão se torna mais e mais silenciado. A família não quer abrir mão do cão, o vizinho não entende absolutamente do que é feito um cão e do direito da família em tê-lo. Ficam e o calam porque querem amá-lo e mesmo que lutem muito contra o homem, acabam por ceder e ele ganha cada vez mais espaço. Não li a Arte da Guerra, quase não assisti a filmes de batalha, mas daqui do meu apartamento, cada dia mais silencioso, percebo que o homem do apartamento de cima abre larga vantagem com a sua estratégia.
Queria que entendessem, que pudessem enxergar o que eu vejo da minha janela. O amor não emudece, acho. Qualquer coisa que se pareça com amor, dá liberdade para a voz sair cada vez mais potente. Deixar gritar é um caminho para o amor. Não precisava a casa de madeira colorida, a ração mais cara na tigela com o nome dele, precisava era de resistência pela liberdade de quem amam.
O vizinho do lado não sabe, mas já cedeu na pior das instâncias, a essência do cão está sendo massacrada e não há ninguém que a proteja. Quando o homem do apartamento grita e os vizinhos cedem, silenciando a cadela, do meu apartamento eu uivo, muito, muito forte.
No início, na confusão de insultos trocados, ninguém me ouvia, ainda sim eu uivava, latia. Ontem, enquanto brigavam e eu comecei com o meu protesto barulhento, de repente, silenciaram eu eu não percebi, continuei com o latido-desabafo. É estranho quando alguém prepara algo muito importante a ser dito e ninguém ouve, as palavras saem, mas não chegam com precisão nos lugares a que se queria. Mas igualmente estranho é quando o silêncio respeita cada palavra preparada, elas parecem sair desencontradas. Invisibilidade e publicidade demais aprisionam o verbo. Meu último latido saiu envergonhado, porque eles ouviram uma mulher latir.
Dirão que eu amo o cão, que eu deveria mesmo ter um. Que talvez devesse intervir e dizer que eu estou completamente desesperada para cuidar dele, mas não, eu não o amo e não sei ter cães, mas amo inteiramente a liberdade da voz e o direito de um cão ser o que ele é. Se o homem gritar, se a família o trancar em casa, eu vou latir, mesmo se fizerem completo silêncio. A minha voz sai mais, quando eu sei pelo que ela sai.
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