quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Pelo direito ao grito, eu lato

  Eles têm insistido muito no silêncio dela. Primeiro colocaram as placas de metal, pintadas de branco, nas grades da varanda, limitada as descobertas, não há estranhamento de visão, susto ou arrebatamento pelo que ela ainda não conhece. Os cães latem, alguns com menor frequência ou  intensidade de menor alcance, mas é do cão o latir. Na linguagem  que é própria do cão, nós reconhecemos o que é ele e o que é dele. Espera-se o latido; estranho é se ele não vem.
   Mas, muito embora a visão horizontal do cão seja uma placa branca, desumanizada e fria, uma constante paisagem glacial na varanda que faz quase quarenta graus nestes últimos dias,  ele ainda tem o céu, os três membros da família, as visitas que a casa recebe e já descobriu um vão entre a grade e o muro de cimento, por onde ele coloca o focinho e acho que sente o que se passa na rua. Então, o cão late. Se eu, em casa, ouço de repente o cão latir, esqueço tudo o que estou fazendo e me concentro no seu latido, me emociono, quase tenho febre de felicidade, porque não puderam calar o que é o cão.

  Mas nos últimos meses, a vigilância aumentou demasiado. Escuto sua voz cada vez menos e, por isso, tenho menos momentos de alegria inesperada, pelo contrário, tenho estado ansiosa, abro a janela várias vezes ao dia, coloco a música mais baixa, abandono os fones e qualquer coisa que me distraia de ouvir os latidos que eu espero, que eu sei que pertencem a sua ancestralidade de cão. Demora muito a vir seu som às vezes, chego em casa, tomo meu banho atenta, porque a janela do banheiro é muito próxima à varada do cão, como, leio e deito, esperando um sinal do cão que não é meu, então, durmo e nada neste dia. De manhã acordo com seu latido, demoro a reconhecer se é mesmo dele ou se eu sonho que é.

  O controle e essa preocupação da família com os latidos do cão começaram depois de alguns meses da sua chegada. Nas primeiras semanas, pequeno ainda, ele só choramingava, medroso, inseguro, reconhecendo a casa que ofereciam a ele,  mal chegava perto da grade, tinha medo do menino, da mulher e do homem, latia só quando se aproximavam muito dele. Mas logo foi se acostumando, reconhecendo as vozes, o barulho do portão, quando a mulher chegava do trabalho, da porta, quando o menino ia para a escola, do carro, quando o homem saia  e passou a latir, antes mesmo de os verem. Perdeu o medo da grade, passava o dia olhando para a rua e latia, para os outros cães, para os outros meninos, mulheres e homens, para os carros e carteiros e tudo mais que passava a fazer parte da sua experiência no mundo. O cão existia independente do toque, o cão via, cheirava, ouvia, por isso, a voz.

  Mas o vizinho, do apartamento em cima do meu, não gostava de ter que ouvir o cão, começou a reclamar, foi quando puseram a placa na grade e arrancaram o cão da sua contemplação mais urbana. Insatisfeito, o vizinho reclamou mais, queria cada vez menos cão e mais silêncio. Começou uma guerra entre o homem e a família, mas só o cão é prejudicado. Fizeram um canil nos fundos da casa, passaram a prendê-lo quando as visitas chegam, não o deixam ir à chuva, protegem-no das folhas que caem das árvores quando venta, mas o homem continua.  A qualquer sinal do cão, grita, ameaça e o cão se torna mais e mais silenciado. A família não quer abrir mão do cão, o vizinho não entende absolutamente do que é feito um cão e do direito da família em tê-lo. Ficam e o calam porque querem amá-lo e mesmo que lutem muito contra o homem, acabam por ceder e ele ganha cada vez mais espaço. Não li a Arte da Guerra, quase  não assisti a filmes de batalha, mas daqui do meu apartamento, cada dia mais silencioso, percebo que o homem do apartamento de cima abre larga vantagem com a sua estratégia.

 Queria que entendessem, que pudessem enxergar o que eu vejo da minha janela. O amor não emudece, acho. Qualquer coisa que se pareça com amor, dá liberdade para a voz sair cada vez mais potente. Deixar gritar é um caminho para o amor. Não precisava a casa de madeira colorida, a ração mais cara na tigela com o nome dele, precisava era de resistência pela liberdade de quem amam.
 O vizinho do lado não sabe, mas já cedeu na pior das instâncias, a essência do cão está sendo massacrada e não há ninguém que a proteja. Quando o homem do apartamento grita e os vizinhos cedem, silenciando a cadela, do meu apartamento eu uivo, muito, muito forte.

  No início, na confusão de insultos trocados, ninguém me ouvia, ainda sim eu uivava, latia. Ontem, enquanto brigavam e eu comecei com o meu protesto barulhento, de repente, silenciaram eu eu não percebi, continuei  com o latido-desabafo. É estranho quando alguém prepara algo muito  importante a ser dito e ninguém ouve, as palavras saem, mas não chegam com precisão nos lugares a que se queria. Mas igualmente estranho é quando o silêncio respeita cada palavra preparada, elas parecem sair desencontradas. Invisibilidade e publicidade demais aprisionam o verbo. Meu último latido saiu envergonhado, porque eles ouviram uma mulher latir.

  Dirão que eu amo o cão, que eu deveria mesmo ter um. Que talvez devesse intervir e dizer que eu estou completamente desesperada para cuidar dele, mas não, eu não o amo e não sei ter cães, mas amo inteiramente a liberdade da voz e o direito de um cão ser o que ele é. Se o homem gritar, se a família o trancar em casa, eu vou latir, mesmo se fizerem completo silêncio. A minha voz sai mais, quando eu sei pelo que ela sai.



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